domingo, 20 de abril de 2014


O Deferimento Tácito no Direito do Ambiente: Com Especial Incidência no Regime de AIA

    A presente publicação aborda a possibilidade de haver deferimento tácito em alguns procedimentos autorizativos ambientais, tendo como foco principal o deferimento tácito da Declaração de Impacto Ambiental (doravante DIA) que vem previsto no regime jurídico de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA). O que se pretende é expor a reacção doutrinal maioritária a esta oportunidade concedida pelo legislador.

   No domínio das matérias ambientais, a “regra é a da proibição sob reserva da permissão” 1, ou seja, é necessário haver um acto autorizativo proveniente de um órgão administrativo competente para que a entidade interessada posso prosseguir com o projecto apresentado. A regra é esta por estarmos perante uma área do Direito que protege bens que são de uma grande fragilidade, escassez e relevância pública.

   Quando um órgão administrativo competente em matérias ambientais se depara com a necessidade de tomar uma decisão acerca de conceder uma autorização a uma entidade para a realização de um projecto, tem de efectuar uma ponderação dos interesses em causa, estando de um lado o interesse público e colectivo da gestão racional dos componentes ambientais e do outro lado os interesses da entidade que pretende obter a autorização. Nesta ponderação ter-se-á em conta regras técnicas e máximas de proporcionalidade (adequação, necessidade e equilíbrio).


  Esta necessidade de intervenção administrativa justifica-se pela sensibilidade das matérias em causa, sendo claramente uma manifestação do princípio da prevenção constitucionalmente consagrado (art.66º/2a CRP), com a finalidade de evitar a autorização de projectos que se poderão tornar potenciais danificadores do ambiente.

  Ora, se existe todo este cuidado para evitar a produção de danos ambientais, parece contraditória a possibilidade, que diversos diplomas que regulam matérias ambientais consagram, de atribuir valor positivo ao silêncio quando o órgão competente não profere uma decisão no prazo legalmente estabelecido, pois aqui procede-se a uma autorização sem haver qualquer intervenção administrativa.


  A prof. CARLA AMADO GOMES não concorda com esta inclinação legislativa e apresenta as consequências mais flagrantes a que o deferimento tácito leva: “esvaziará os princípios da prevenção e da gestão racional dos bens naturais, na medida em que legitima a demissão da Administração da sua tarefa de ponderação de interesses” (já supra referidos), “neutraliza o princípio da participação de interessados” e “transforma em nihil obstat a não pronúncia de órgãos consultivos com competências especificamente ambientais” 2, ou seja, encara-se a sua não pronúncia como um não impedimento.

  Para a professora, em vez da formação de um deferimento tácito em caso de ausência de decisão, o que se deveria verificar era uma indecisão e o interessado poderia reagir contra esta indecisão através de uma acção administrativa especial de condenação à prática do acto devido contra o órgão competente para a emissão da decisão e, caso o órgão consultivo também não tenha apresentado um parecer, contra este através de um litisconsórcio passivo necessário.


è O Deferimento Tácito da DIA

   O Decreto-Lei nº 151-B/2013, que regula o regime jurídico da AIA, apresenta-nos o conceito de DIA no art. 2º/g), sendo definida como a “decisão, expressa ou tácita, sobre a viabilidade ambiental de um projecto (...)”.  No seu artigo 19º/2 vem prever os prazos para a emissão da DIA, prevendo também, expressamente, que caso estes não seja respeitados, se formará um deferimento tácito da avaliação de impacto ambiental.

   Tudo o que foi exposto supra também aqui se aplica e, nesta esteira, VASCO PEREIRA DA SILVA vem considerar que esta é uma má solução legislativa. Entende que se o que é pretendido com a criação deste regime é a apreciação das consequências ecológicas de uma decisão e que para isso até se cria um procedimento especial autónomo para que se chegue à melhor avaliação possível, não faz qualquer sentido atribuir um valor positivo ao silêncio, pois isso permitiria que o projecto avançasse sem haver, de facto, qualquer avaliação – é um contrasenso, nas palavras do professor.

   A consagração do deferimento tácito parece ser contraditória em variados aspectos. JOSÉ FIGUEIREDO DIAS analisou, e bem, a Directiva que deu origem à criação do Regime em causa, a Directiva nº 85/337/CEE (posteriormente revogada pela Directiva nº 2011/92/UE) e deparou-se com algumas contradições. O autor destaca quatro artigos da Directiva, a saber 3, 4:

o   Art. 1º/2, que define a noção de “Aprovação” como “a decisão da autoridade ou das autoridades competentes que confere ao dono da obra o direito de realizar o projecto”;

o   Art. 3º, segundo o qual “a avaliação de impacte ambiental identificará, descreverá e avaliará (…) os efeitos directos e indirectos de um projecto (…)”;

o   Art. 6º/2 e art. 9º/1 que estabelecem a necessária consulta pública.


  Daqui podemos retirar que a directiva estabelece que no procedimento de avaliação do impacte ambiental, tem de haver uma decisão expressa e fundamentada, bem como a necessidade da intervenção do público, para que qualquer interessado possa se pronunciar. Não parece dar espaço à existência de decisões tácitas, muito menos à possibilidade de o projecto avançar sem um procedimento de avaliação ou com um procedimento de avaliação mas sem a participação pública. Parece pois que a transposição da Directiva para a ordem jurídica portuguesa contém algumas falhas.

  O Decreto-Lei nº 69/2000 previa que no caso de haver deferimento tácito, a entidade licenciadoras apenas teria em conta o EIA e, é certo que o Decreto-Lei nº 151-B/2013 acrescentou no art. 19º/4 que também se terá em conta os elementos referidos no art. 16º, ou seja, pareceres técnicos e relatórios de consulta pública, no entanto, refere que estes últimos serão tidos em conta “quando disponíveis”, parecendo abrir a possibilidade de a entidade licenciadora decidir mesmo quando estes não existam, não resolvendo o problema da possível ausência da participação pública.  

 
   Mas as contradições não ficam por aqui. O próprio Decreto-Lei nº 151-B/2013 vem excluir a possibilidade de haver deferimento tácito quando em causa estejam impactes transfronteiriços (art. 33º/3) o que levou JOSÉ FIGUEIREDO DIAS a afirmar que esta decisão talvez tenha sido tomada pelo facto de o legislador não querer adoptar uma medida sobre a qual ele próprio teria dúvidas, quando estamos perante procedimentos que envolvam outros Estados.


  JOSÉ FIGUEIREDO DIAS ainda apresenta incoerências entre o deferimento tácito previsto quanto à DIA e o regime geral de deferimento tácito no direito português. Entende que a regra geral do direito português está vertida no art. 109º do CPA, resultando daqui que devemos interpretar o silêncio dos órgãos administrativos como um indeferimento tácito. Na minha opinião, este argumento perdeu alguma força. Com a criação da acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido foi revogado tacitamente o nº1 do art. 109º, deixando de haver necessidade de se considerar como regra geral o indeferimento tácito em caso de silêncio. Tendo por base esta ideia, é compreensível a solução apresentada pela professora CARLA AMADO GOMES (e que expus anteriormente) aquando da apresentação de uma solução alternativa ao deferimento tácito no âmbito de procedimentos autorizativos ambientais.

  O CPA apenas vem prever a possibilidade de existir deferimento tácito nos termos do art. 108º. A Doutrina tem entendido que esta possibilidade apenas vem prevista para as actividades dos particulares que estão sujeitas a autorizações permissivas, ou seja, quando o particular já dispõe de um direito pré-existente, só necessitando de uma autorização para o exercer, não parecendo aceitável considerar que o particular já dispõe de um direito pré-existente de emissão da DIA.  


è Mecanismos de Defesa

  Mesmo com a doutrina, na sua grande maioria, a não concordar com a figura do deferimento tácito, este está consagrado e, como tal, tem de ser respeitado. No entanto, pode haver mecanismos que coloquem um “travão” à produção de danos significativos para o Ambiente.

  Para a o deferimento tácito nos actos autorizativos no geral, CARLA AMADO GOMES entende que esta agilização procedimental não significa uma desresponsabilização. No caso de existir uma violação dos princípios da prossecução do interesse público, da ponderação dos interesses e da decisão (o que naturalmente acontecerá sempre que o projecto sujeito a AIA, a ter sido devidamente avaliado, teria obtido uma DIA desfavorável), estamos perante “actos” ilícitos, logo devemos aplicar o regime de responsabilidade da função administrativa (art. 266º/1 CRP e art. 9º CPA), bem como o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades Públicas (Lei nº 67/2007).

   Em relação ao regime de AIA, se se chegar à fase em que se formou um deferimento tácito da DIA e, portanto, o EIA é o único documento que a entidade licenciadora tem de ter em conta na sua decisão, a professora considera que pode este órgão indeferir o pedido de licenciamento com a justificação de não ter elementos de ponderação suficientes. Também defende que “os interessados podem propor uma acção administrativa especial de impugnação da validade do deferimento tácito ou de reconstrução deste nas fases lacunares (art. 47º CPTA)” 5, com fundamento na violação dos princípios da prevenção, da participação e da imparcialidade.

   VASCO PEREIRA DA SILVA relembra que o deferimento não significa automaticamente o licenciamento do projecto. Se não foi realizado um procedimento de avaliação do impacte ambiental do projecto, então torna-se obrigatória a sua realização em sede de licença ambiental (caso haja) ou pela entidade competente para o licenciamento. Se isto não suceder, a consequência jurídica é a nulidade, também com fundamento na violação de princípios ambientais constitucionalmente consagrados.


Conclusão

   Apresentadas as desvantagens e consequências que um deferimento tácito na área do Direito do Ambiente tem, não parece haver grande “espaço de manobra” para possíveis vantagens.

   Em primeiro lugar importa afirmar que esta figura pode existir sem qualquer problema em assuntos ambientais, prova disso é a sua consagração no art. 12º/9 do Regime de AIA, referente à Proposta de Definição do Âmbito (PDA) do EIA, dizendo-nos que caso não haja uma decisão nos prazos estipulados, a proposta apresentada pelo proponente determina a definição do âmbito do EIA. A grande diferença é que estamos perante uma fase facultativa, isto é, se há a possibilidade de esta fase nem sequer existir, então também não causará grandes danos a sua existência e posterior aprovação por deferimento tácito.

   Em segundo lugar, é possível retirarmos vantagens desta consagração legislativa. É inegável que se verifica uma aceleração procedimental, mas será esta vantagem suficiente para permitir a figura? Parece-me que não, não nos beneficia em nada termos um procedimento célere se não se demonstra eficiente.

   Na prática tem-se verificado um efeito positivo: com o receio que se verifique um deferimento tácito sobre estas matérias, a Administração tem o cuidado de respeitar sempre os prazos estipulados (é, portanto, uma espécie de efeito persuasor) e, o que é certo, é que até à data, em Portugal, nunca houve uma DIA aprovada por Deferimento Tácito.  


Carlos Sarmento
Nº 21017
 
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1  CARLA AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Direito, página 114;

2 CARLA AMAGO GOMES, Introdução ao Estudo do Direito, página 117;

3 JOSÉ FIGUEIREDO DIAS, O Deferimento Tácito da DIA, página 73;

4 Todos estes artigos correspondem também à Directiva 2011/92/UE, actualmente em vigor;

5 CARLA AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Direito, páginas 158 e 159.
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Bibliografia:

·         DIAS, José Figueiredo, O Deferimento Tácito da DIA, in Revista do CEDOUA, 8, ano IV, 2001;

·         ARAGÃO, Alexandra; DIAS, José Figueiredo; BARRADAS, Maria Ana, O Novo Regime da AIA: avaliação de previsíveis impactes legislativos, in Revista do CEDOUA, 5, ano III, 2000;

·         GOMES, Carla Amado, Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL, 2º Edição, 2014;

·         SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito: Lições de Direito do Ambiente, Almedina, 2002.

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