O Deferimento Tácito no Direito do
Ambiente: Com Especial Incidência no Regime de AIA
A presente publicação aborda a
possibilidade de haver deferimento tácito em alguns procedimentos autorizativos
ambientais, tendo como foco principal o deferimento tácito da Declaração de
Impacto Ambiental (doravante DIA) que vem previsto no regime jurídico de
Avaliação de Impacte Ambiental (AIA). O que se pretende é expor a reacção
doutrinal maioritária a esta oportunidade concedida pelo legislador.
No domínio das matérias ambientais, a “regra é a da proibição sob
reserva da permissão” 1, ou seja, é necessário haver um acto autorizativo
proveniente de um órgão administrativo competente para que a entidade interessada
posso prosseguir com o projecto apresentado. A regra é esta por estarmos
perante uma área do Direito que protege bens que são de uma grande fragilidade,
escassez e relevância pública.
Quando um órgão administrativo competente em matérias ambientais se
depara com a necessidade de tomar uma decisão acerca de conceder uma
autorização a uma entidade para a realização de um projecto, tem de efectuar
uma ponderação dos interesses em causa, estando de um lado o interesse público
e colectivo da gestão racional dos componentes ambientais e do outro lado os
interesses da entidade que pretende obter a autorização. Nesta ponderação
ter-se-á em conta regras técnicas e máximas de proporcionalidade (adequação,
necessidade e equilíbrio).
Esta necessidade de intervenção administrativa justifica-se pela
sensibilidade das matérias em causa, sendo claramente uma manifestação do
princípio da prevenção constitucionalmente consagrado (art.66º/2a CRP), com a
finalidade de evitar a autorização de projectos que se poderão tornar potenciais
danificadores do ambiente.
Ora, se existe todo este cuidado para evitar a produção de danos
ambientais, parece contraditória a possibilidade, que diversos diplomas que
regulam matérias ambientais consagram, de atribuir valor positivo ao silêncio
quando o órgão competente não profere uma decisão no prazo legalmente
estabelecido, pois aqui procede-se a uma autorização sem haver qualquer
intervenção administrativa.
A prof. CARLA AMADO GOMES não concorda com esta inclinação legislativa e
apresenta as consequências mais flagrantes a que o deferimento tácito leva:
“esvaziará os princípios da prevenção e da gestão racional dos bens naturais,
na medida em que legitima a demissão da Administração da sua tarefa de
ponderação de interesses” (já supra
referidos), “neutraliza o princípio da participação de interessados” e
“transforma em nihil obstat a não
pronúncia de órgãos consultivos com competências especificamente ambientais” 2, ou seja, encara-se a sua não pronúncia como um não
impedimento.
Para a professora, em vez da formação de um deferimento tácito em caso
de ausência de decisão, o que se deveria verificar era uma indecisão e o interessado
poderia reagir contra esta indecisão através de uma acção administrativa
especial de condenação à prática do acto devido contra o órgão competente para
a emissão da decisão e, caso o órgão consultivo também não tenha apresentado um
parecer, contra este através de um litisconsórcio passivo necessário.
è O Deferimento Tácito da DIA
O
Decreto-Lei nº 151-B/2013, que regula o regime jurídico da AIA, apresenta-nos o
conceito de DIA no art. 2º/g), sendo definida como a “decisão, expressa ou
tácita, sobre a viabilidade ambiental de um projecto (...)”. No seu artigo 19º/2 vem prever os prazos para
a emissão da DIA, prevendo também, expressamente, que caso estes não seja
respeitados, se formará um deferimento tácito da avaliação de impacto ambiental.
Tudo o que
foi exposto supra também aqui se
aplica e, nesta esteira, VASCO PEREIRA DA SILVA vem considerar que esta é uma
má solução legislativa. Entende que se o que é pretendido com a criação deste
regime é a apreciação das consequências ecológicas de uma decisão e que para
isso até se cria um procedimento especial autónomo para que se chegue à melhor
avaliação possível, não faz qualquer sentido atribuir um valor positivo ao
silêncio, pois isso permitiria que o projecto avançasse sem haver, de facto,
qualquer avaliação – é um contrasenso, nas palavras do professor.
A
consagração do deferimento tácito parece ser contraditória em variados
aspectos. JOSÉ FIGUEIREDO DIAS analisou, e bem, a Directiva que deu origem à
criação do Regime em causa, a Directiva nº 85/337/CEE (posteriormente revogada
pela Directiva nº 2011/92/UE) e deparou-se com algumas contradições. O autor
destaca quatro artigos da Directiva, a saber 3,
4:
o Art. 1º/2, que define a noção de “Aprovação” como “a
decisão da autoridade ou das autoridades competentes que confere ao dono da
obra o direito de realizar o projecto”;
o Art. 3º, segundo o qual “a avaliação de impacte
ambiental identificará, descreverá e avaliará (…) os efeitos directos e
indirectos de um projecto (…)”;
o Art. 6º/2 e art. 9º/1 que estabelecem a necessária
consulta pública.
Daqui podemos retirar que a directiva estabelece que no procedimento de
avaliação do impacte ambiental, tem de haver uma decisão expressa e
fundamentada, bem como a necessidade da intervenção do público, para que qualquer
interessado possa se pronunciar. Não parece dar espaço à existência de decisões
tácitas, muito menos à possibilidade de o projecto avançar sem um procedimento
de avaliação ou com um procedimento de avaliação mas sem a participação
pública. Parece pois que a transposição da Directiva para a ordem jurídica
portuguesa contém algumas falhas.
O Decreto-Lei nº 69/2000 previa que no caso de haver deferimento tácito,
a entidade licenciadoras apenas teria em conta o EIA e, é certo que o
Decreto-Lei nº 151-B/2013 acrescentou no art. 19º/4 que também se terá em conta
os elementos referidos no art. 16º, ou seja, pareceres técnicos e relatórios de
consulta pública, no entanto, refere que estes últimos serão tidos em conta
“quando disponíveis”, parecendo abrir a possibilidade de a entidade
licenciadora decidir mesmo quando estes não existam, não resolvendo o problema
da possível ausência da participação pública.
Mas as contradições não ficam por
aqui. O próprio Decreto-Lei nº 151-B/2013 vem excluir a possibilidade de haver
deferimento tácito quando em causa estejam impactes transfronteiriços (art.
33º/3) o que levou JOSÉ FIGUEIREDO DIAS a afirmar que esta decisão talvez tenha
sido tomada pelo facto de o legislador não querer adoptar uma medida sobre a
qual ele próprio teria dúvidas, quando estamos perante procedimentos que envolvam
outros Estados.
JOSÉ FIGUEIREDO DIAS ainda apresenta incoerências entre o deferimento
tácito previsto quanto à DIA e o regime geral de deferimento tácito no direito
português. Entende que a regra geral do direito português está vertida no art.
109º do CPA, resultando daqui que devemos interpretar o silêncio dos órgãos
administrativos como um indeferimento tácito. Na minha opinião, este argumento
perdeu alguma força. Com a criação da acção administrativa especial de
condenação à prática de acto devido foi revogado tacitamente o nº1 do art.
109º, deixando de haver necessidade de se considerar como regra geral o
indeferimento tácito em caso de silêncio. Tendo por base esta ideia, é
compreensível a solução apresentada pela professora CARLA AMADO GOMES (e que
expus anteriormente) aquando da apresentação de uma solução alternativa ao
deferimento tácito no âmbito de procedimentos autorizativos ambientais.
O CPA apenas vem prever a possibilidade de existir deferimento tácito
nos termos do art. 108º. A Doutrina tem entendido que esta possibilidade apenas
vem prevista para as actividades dos particulares que estão sujeitas a
autorizações permissivas, ou seja, quando o particular já dispõe de um direito
pré-existente, só necessitando de uma autorização para o exercer, não parecendo
aceitável considerar que o particular já dispõe de um direito pré-existente de
emissão da DIA.
è Mecanismos de Defesa
Mesmo com a
doutrina, na sua grande maioria, a não concordar com a figura do deferimento
tácito, este está consagrado e, como tal, tem de ser respeitado. No entanto,
pode haver mecanismos que coloquem um “travão” à produção de danos significativos
para o Ambiente.
Para a o
deferimento tácito nos actos autorizativos no geral, CARLA AMADO GOMES entende
que esta agilização procedimental não significa uma desresponsabilização. No caso
de existir uma violação dos princípios da prossecução do interesse público, da
ponderação dos interesses e da decisão (o que naturalmente acontecerá sempre
que o projecto sujeito a AIA, a ter sido devidamente avaliado, teria obtido uma
DIA desfavorável), estamos perante “actos” ilícitos, logo devemos aplicar o
regime de responsabilidade da função administrativa (art. 266º/1 CRP e art. 9º
CPA), bem como o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e
demais entidades Públicas (Lei nº 67/2007).
Em relação
ao regime de AIA, se se chegar à fase em que se formou um deferimento tácito da
DIA e, portanto, o EIA é o único documento que a entidade licenciadora tem de
ter em conta na sua decisão, a professora considera que pode este órgão
indeferir o pedido de licenciamento com a justificação de não ter elementos de
ponderação suficientes. Também defende que “os interessados podem propor uma
acção administrativa especial de impugnação da validade do deferimento tácito
ou de reconstrução deste nas fases lacunares (art. 47º CPTA)” 5, com fundamento na violação dos princípios da
prevenção, da participação e da imparcialidade.
VASCO
PEREIRA DA SILVA relembra que o deferimento não significa automaticamente o
licenciamento do projecto. Se não foi realizado um procedimento de avaliação do
impacte ambiental do projecto, então torna-se obrigatória a sua realização em
sede de licença ambiental (caso haja) ou pela entidade competente para o
licenciamento. Se isto não suceder, a consequência jurídica é a nulidade, também
com fundamento na violação de princípios ambientais constitucionalmente
consagrados.
Conclusão
Apresentadas as desvantagens e consequências que um deferimento tácito
na área do Direito do Ambiente tem, não parece haver grande “espaço de manobra”
para possíveis vantagens.
Em primeiro
lugar importa afirmar que esta figura pode existir sem qualquer problema em
assuntos ambientais, prova disso é a sua consagração no art. 12º/9 do Regime de
AIA, referente à Proposta de Definição do Âmbito (PDA) do EIA, dizendo-nos que
caso não haja uma decisão nos prazos estipulados, a proposta apresentada pelo
proponente determina a definição do âmbito do EIA. A grande diferença é que
estamos perante uma fase facultativa, isto é, se há a possibilidade de esta
fase nem sequer existir, então também não causará grandes danos a sua
existência e posterior aprovação por deferimento tácito.
Em segundo
lugar, é possível retirarmos vantagens desta consagração legislativa. É inegável
que se verifica uma aceleração procedimental, mas será esta vantagem suficiente
para permitir a figura? Parece-me que não, não nos beneficia em nada termos um
procedimento célere se não se demonstra eficiente.
Na prática
tem-se verificado um efeito positivo: com o receio que se verifique um
deferimento tácito sobre estas matérias, a Administração tem o cuidado de
respeitar sempre os prazos estipulados (é, portanto, uma espécie de efeito
persuasor) e, o que é certo, é que até à data, em Portugal, nunca houve uma DIA
aprovada por Deferimento Tácito.
Carlos Sarmento
Nº 21017
1 CARLA
AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do
Direito, página 114;
2 CARLA AMAGO GOMES, Introdução ao Estudo do Direito, página 117;
3 JOSÉ FIGUEIREDO DIAS, O Deferimento Tácito da DIA, página 73;
4 Todos estes artigos correspondem
também à Directiva 2011/92/UE, actualmente em vigor;
5 CARLA AMADO GOMES, Introdução ao Estudo do Direito, páginas
158 e 159.
____________________________________
Bibliografia:
·
DIAS,
José Figueiredo, O Deferimento Tácito da
DIA, in Revista do CEDOUA, 8, ano IV, 2001;
·
ARAGÃO,
Alexandra; DIAS, José Figueiredo; BARRADAS, Maria Ana, O Novo Regime da AIA: avaliação de previsíveis impactes legislativos,
in Revista do CEDOUA, 5, ano III, 2000;
·
GOMES,
Carla Amado, Introdução ao Direito do
Ambiente, AAFDL, 2º Edição, 2014;
·
SILVA,
Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito:
Lições de Direito do Ambiente, Almedina, 2002.
Visto.
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