Do
jurisdição competente em matéria ambiental
Este
trabalho pretende descrever a delimitação da jurisdição competente perante
questões materialmente relacionadas com a tutela do ambiente. Seguir-se-à, de
perto, a posição da Prof. Carla Amado Gomes nesta matéria.
Consideradas as várias situações de dúvida quanto à
jurisdição competente, impõe-se a procura de um critério claro, enquadrado na
letra da lei, que permita estabelecer o tipo de tutela a que a matéria ambiental
está sujeita.
Num
primeiro nível de análise, há que atender ao prescrito no art. 45º/1 da Lei de
Bases do Ambiente (LBA), na versão estabelecida pela Lei 13/2002, de 19 de
Fevereiro, diploma que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais (ETAF). Assim, a determinação do foro competente depende da
caracterização da natureza da relação jurídica, enquanto condição prévia.
Atendamos, de seguida, à letra do art. 212º/3 CRP, segundo a qual “compete aos
tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos
que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais”. Terão
as situações jurídicas, decorrentes da gestão e aproveitamento de recursos
ambientais, natureza administrativa, nos termos da CRP? Seguindo a Prof. Carla
Amado Gomes, a utilização de bens ambientais está sujeita a um princípio de
gestão racional, numa lógica de proibição
sob reserva de permissão, algo que implica a intervenção da Administração
em momento prévio a um conjunto alargado de actividades. Daí o número de actos
autorizativos e de normas que postulam parâmetros de actuação para operadores,
criando-se uma variedade de relações jurídicas cuja validade é apreciada pelos
tribunais administrativos (4º/1/b) ETAF). Com o acréscimo das acções populares
contra entidades públicas por violações de normas jus-ambientais, de acordo com
o art. 4º/1/l) ETAF, a Prof. conclui que a jurisdição administrativa constitui
a jurisdição preferencial do
contencioso ambiental. No mesmo sentido, o Prof. Vieira de Andrade afirma que a
alínea l), em complemento da alínea b), levará a incluir na jurisdição
administrativa todas as questões ambientais que não sejam estritamente
privadas.
A
anterior redacção do art. 45º LBA remetia todo o contencioso ambiental, preventivo
e ressarcitório, para a jurisdição comum, reflexo de uma visão
predominantemente subjectivista, de difícil articulação com o citado 212º/3
CRP. A revisão do texto do art. 45º LBA veio estabelecer a possibilidade de a
protecção ambiental ser accionável pela via jurisdicional administrativa.
Note-se que, hoje, essa protecção é captada pela jurisdição administrativa nos
casos (alem da alínea b)), da alínea a), em casos de lesão do direito ao
ambiente por acções ou omissões materiais administrativas, e g), h), e i), em
função do sujeito concreto a quem é imputada a responsabilidade.
A
alínea l) do art. 4º ETAF vem estender o âmbito da protecção jurisdicional
administrativa, ao permitir a apreciação de questões relativas a prevenção,
cessação e reparação de violações a bens constitucionalmente protegidos em
matéria de ambiente quando cometidas por entidades públicas, “sempre que
desenvolvidas a descoberto de qualquer autorização administrativa, seja ela
legalmente exigível ou não” (Carla Amado Gomes); “a relação jurídica
administrativa ganha corpo através da mera actuação material lesiva, bem como
por força da caracterização do dever jurídico da prática de um acto
administrativo, operação material ou emissão de norma, necessário à protecção
de bens de interesse colectivo”. No
que diz respeito a bens estaduais, devem considerar-se “constitucionalmente
protegidos” os bens do domínio público substancial ou por natureza (Vieira de
Andrade, citando Ana Raquel Moniz).
O
Prof. Mário Aroso de Almeida entende que a alínea l) prescinde da adopção de um
critério material ou qualitativo de delimitação entre actuações de gestão
pública e actuações de gestão privada das entidades públicas, para adoptar o
critério objectivo da natureza da entidade demandada. Assim, desde que esteja
em causa uma actuação de uma entidade pública, o litígio deverá ser submetido à
apreciação dos tribunais administrativos, o que constitui um alargamento, nesta
matéria, do âmbito das questões a deduzir perante a jurisdição administrativa,
quando em comparação com o regime anterior. O Prof. ainda acrescenta que o
verdadeiro alcance deste preceito consiste na cobertura de operações materiais
da Administração, cuja qualificação como actuações de gestão pública ou privada
poderia revelara-se problemática, de modo que a previsão da norma elimina a relevância
processual da referida contraposição. Por fim, “do art. 4º ETAF, no seu
conjunto – pois a línea l) não pode ser lida isoladamente – resulta que as acções
dirigidas à prevenção, cessação ou reparação de actividades privadas lesivas do
ambiente só estão excluídas do âmbito da jurisdição administrativa desde que não
representem o exercício de funções materialmente administrativas, nem sejam
disciplinadas por normas de direito administrativo”.
Dada
a natureza administrativa da relação jurídica autorizativa (4º/1 ETAF),
verifica-se uma situação de preferência material pela jurisdição
administrativa. A Prof. Carla Amado Gomes refere que uma leitura conjugada das alíneas
b) e l) do art. 4º ETAF permite a atribuição, segura, à jurisdição
administrativa de um conjunto de situações:
a)
validade
de uma autorização, independentemente de uma defesa de bens individuais ou
colectivos, tratando-se aqui do núcleo de reserva de função, postulado nos art.
212º/3 CRP e 1º/1 ETAF. Tal é confirmado pela alínea b).
b) violação de normas de protecção do
interesse ambiental por por entidades públicas responsáveis pela ofensa,
matéria ou juridicamente, pela produção de poluição acima do aceitável o pela
emissão de uma acto autorizativo que permite a terceiro tal emissão, de acordo
com alínea l).
c) violação de normas de interesse ambiental
por entidades públicas traduzida numa omissão de fiscalização de instalações ou
actividades autorizadas (alínea l)) configurando-se esta violação perante um
dever legal de agir.
A Prof. afirma, todavia, que
persiste um conjunto de casos duvidosos:
d) ofensa a normas jus-ambientais
substanciada na exploração de uma actividade, por um privado, sem autorização,
sendo esta necessária. Este ponto é problemático, na medida em a completa
inexistência de autorização pressupõe, naturalmente, a inexistência de qualquer
relação administrativa prévia na qual se possa basear o pedido, tanto na sua
vertente inibitória como ressarcitória. Se essa relação existisse, o litígio
seria atribuído à jurisdição administrativa por via da alínea b). Do mesmo
modo, não se verifica qualquer acção ou omissão por parte da Administração, o
que levaria á aplicação da alínea l). Aqui, a Prof. defende que a jurisdição administrativa
apenas será competente se o autor demonstrar que alertou as autoridades e estas
se remeteram à inércia, caso em que “analogamente à previsão do art. 37º/3
CPTA, poderá dar-se a captação do litígio pelo foro administrativo, uma vez
consubstanciada, formal e circunstanciadamente, a omissão de agir, devendo a
acção administrativa comum ser proposta contra o privado prevaricador e contra
a Administração que relaxou o os seus deveres de fiscalização, feita a prova da
inércia”. O Prof. Mário Aroso de Almeida, diversamente, entende que estas
situações correspondem a uma violação do dever de agir da Administração, o que
enquadraria a questão no domínio administrativo.
e) Ofensa a normas jus-ambientais decorrente
da exploração de uma actividade, por um privado, dotado de autorização
validamente concedida, mas abusando dos seus termos. Em primeiro lugar, se o
privado actuar dentro dos limites da autorização, e, mesmo assim, causar dano
ao ambiente, impõe-se analisar o preenchimento dos requisitos da responsabilidade
objectiva, previstos no art. 20º/3 RPRDE. Se não for o caso, e partido do
princípio de que a legalidade da autorização não foi posta em causa, a
jurisdição competente, entende a Prof., será a dos tribunais comuns,
independentemente de o pedido se destinar à cessação ou à reparação do eventual
dano ecológico. A alternativa do foro administrativo apenas seria equacionável
caso o autor prove denúncia prévia às autoridades competentes.
f) Ofensa a normas jus-ambientais “que
redunda numa alteração adversa mensurável a um estado-dever de um componente
ambiental”, como fauna e flora protegidas, água, solo e atmosfera, por um
privado e denunciada pelo proprietário do bem, prejudicado na sua esfera
jurídica, patrimonial e não patrimonial. A Prof. afirma que, nestas situações,
a dimensão patrimonial do bem consome a sua dimensão ecológica, de modo que a
reparação do dano deverá ser exigida perante o foro comum, uma vez que o
objecto do processo se traduz na indemnização de um dano qualificável como
privado pelo autor. É feita a reserva de que se o autor do dano, mesmo que
perspectivado na sua dimensão patrimonial, for uma entidade pública, a
jurisdição pertencerá aos tribunais administrativos, não através do art.
4º/1/l) ETAF, mas pela alínea h) do mesmo art., que remete para o regime
substantivo da lei 67/2007, de 31 de Dezembro, tratando-se de um acto de
Direito Público. De resto, este caso afasta qualquer possibilidade de
chamamento da jurisdição administrativa.
Definitivamente
afastados da jurisdição administrativa ficam os litígios que envolvam a
aplicação de sanções contra-ordenacionais e medidas cautelares, tal como
questões referentes a direitos de personalidade. Esta afastamento estende-se a
acções cujos intervenientes sejam, exclusivamente, privados, estando em causa a
defesa de interesses individuais, ainda que com reflexos em matéria ambiental.
Em
conclusão, a Prof. Carla Amado Gomes defende que o carácter público, e a
inserção do interesse na defesa e promoção dos bens ambientais numa lógica de
solidariedade colectiva, torna preferível o enquadramento das questões
ambientais no âmbito da jurisdição administrativa. Existe, deste modo,
interesse público na prevenção e reparação de eventuais danos com repercussão
na comunidade, que deve ser claramente diferenciado face à tutela de direitos
individuais. Se a distinção não for clara, o sistema corre o risco de permitir
o aproveitamento abusivo, por particulares, de acções que visem a reparação de
danos ambientais, com prejuízo dos bens comunitários que se pretende
proteger.
Bibliografia:
.”Introdução
ao Direito do Ambiente”, Carla Amado Gomes
.”Textos
Dispersos de Direito do Ambiente – I Volume”, Carla Amado Gomes
.”Verde
Cor de Direito”, Vasco Pereira da Silva
.”Justiça
Administrativa”, José Carlos Vieira de Andrade
.”Tutela
jurisdicional em matéria ambiental” in “Textos de Direito do Ambiente”, Mário
Aroso de Almeida
.”Manual de
Processo Administrativo”, Mário Aroso de Ameida
João Nuno Alves
Monteiro Gonçalves Casquinho, nº 18197, subturma 5
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