domingo, 18 de maio de 2014

Da jurisdição competente em matéria ambiental


Do jurisdição competente em matéria ambiental
        


Este trabalho pretende descrever a delimitação da jurisdição competente perante questões materialmente relacionadas com a tutela do ambiente. Seguir-se-à, de perto, a posição da Prof. Carla Amado Gomes nesta matéria.

  Consideradas as várias situações de dúvida quanto à jurisdição competente, impõe-se a procura de um critério claro, enquadrado na letra da lei, que permita estabelecer o tipo de tutela a que a matéria ambiental está sujeita.
Num primeiro nível de análise, há que atender ao prescrito no art. 45º/1 da Lei de Bases do Ambiente (LBA), na versão estabelecida pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, diploma que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF). Assim, a determinação do foro competente depende da caracterização da natureza da relação jurídica, enquanto condição prévia. Atendamos, de seguida, à letra do art. 212º/3 CRP, segundo a qual “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Terão as situações jurídicas, decorrentes da gestão e aproveitamento de recursos ambientais, natureza administrativa, nos termos da CRP? Seguindo a Prof. Carla Amado Gomes, a utilização de bens ambientais está sujeita a um princípio de gestão racional, numa lógica de proibição sob reserva de permissão, algo que implica a intervenção da Administração em momento prévio a um conjunto alargado de actividades. Daí o número de actos autorizativos e de normas que postulam parâmetros de actuação para operadores, criando-se uma variedade de relações jurídicas cuja validade é apreciada pelos tribunais administrativos (4º/1/b) ETAF). Com o acréscimo das acções populares contra entidades públicas por violações de normas jus-ambientais, de acordo com o art. 4º/1/l) ETAF, a Prof. conclui que a jurisdição administrativa constitui a jurisdição preferencial  do contencioso ambiental. No mesmo sentido, o Prof. Vieira de Andrade afirma que a alínea l), em complemento da alínea b), levará a incluir na jurisdição administrativa todas as questões ambientais que não sejam estritamente privadas.
A anterior redacção do art. 45º LBA remetia todo o contencioso ambiental, preventivo e ressarcitório, para a jurisdição comum, reflexo de uma visão predominantemente subjectivista, de difícil articulação com o citado 212º/3 CRP. A revisão do texto do art. 45º LBA veio estabelecer a possibilidade de a protecção ambiental ser accionável pela via jurisdicional administrativa. Note-se que, hoje, essa protecção é captada pela jurisdição administrativa nos casos (alem da alínea b)), da alínea a), em casos de lesão do direito ao ambiente por acções ou omissões materiais administrativas, e g), h), e i), em função do sujeito concreto a quem é imputada a responsabilidade.
A alínea l) do art. 4º ETAF vem estender o âmbito da protecção jurisdicional administrativa, ao permitir a apreciação de questões relativas a prevenção, cessação e reparação de violações a bens constitucionalmente protegidos em matéria de ambiente quando cometidas por entidades públicas, “sempre que desenvolvidas a descoberto de qualquer autorização administrativa, seja ela legalmente exigível ou não” (Carla Amado Gomes); “a relação jurídica administrativa ganha corpo através da mera actuação material lesiva, bem como por força da caracterização do dever jurídico da prática de um acto administrativo, operação material ou emissão de norma, necessário à protecção de bens de interesse colectivo”.  No que diz respeito a bens estaduais, devem considerar-se “constitucionalmente protegidos” os bens do domínio público substancial ou por natureza (Vieira de Andrade, citando Ana Raquel Moniz).
O Prof. Mário Aroso de Almeida entende que a alínea l) prescinde da adopção de um critério material ou qualitativo de delimitação entre actuações de gestão pública e actuações de gestão privada das entidades públicas, para adoptar o critério objectivo da natureza da entidade demandada. Assim, desde que esteja em causa uma actuação de uma entidade pública, o litígio deverá ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos, o que constitui um alargamento, nesta matéria, do âmbito das questões a deduzir perante a jurisdição administrativa, quando em comparação com o regime anterior. O Prof. ainda acrescenta que o verdadeiro alcance deste preceito consiste na cobertura de operações materiais da Administração, cuja qualificação como actuações de gestão pública ou privada poderia revelara-se problemática, de modo que a previsão da norma elimina a relevância processual da referida contraposição. Por fim, “do art. 4º ETAF, no seu conjunto – pois a línea l) não pode ser lida isoladamente – resulta que as acções dirigidas à prevenção, cessação ou reparação de actividades privadas lesivas do ambiente só estão excluídas do âmbito da jurisdição administrativa desde que não representem o exercício de funções materialmente administrativas, nem sejam disciplinadas por normas de direito administrativo”.

Dada a natureza administrativa da relação jurídica autorizativa (4º/1 ETAF), verifica-se uma situação de preferência material pela jurisdição administrativa. A Prof. Carla Amado Gomes refere que uma leitura conjugada das alíneas b) e l) do art. 4º ETAF permite a atribuição, segura, à jurisdição administrativa de um conjunto de situações:
a)     validade de uma autorização, independentemente de uma defesa de bens individuais ou colectivos, tratando-se aqui do núcleo de reserva de função, postulado nos art. 212º/3 CRP e 1º/1 ETAF. Tal é confirmado pela alínea b).

b)    violação de normas de protecção do interesse ambiental por por entidades públicas responsáveis pela ofensa, matéria ou juridicamente, pela produção de poluição acima do aceitável o pela emissão de uma acto autorizativo que permite a terceiro tal emissão, de acordo com alínea l).

c)     violação de normas de interesse ambiental por entidades públicas traduzida numa omissão de fiscalização de instalações ou actividades autorizadas (alínea l)) configurando-se esta violação perante um dever legal de agir.

A Prof. afirma, todavia, que persiste um conjunto de casos duvidosos:

d)    ofensa a normas jus-ambientais substanciada na exploração de uma actividade, por um privado, sem autorização, sendo esta necessária. Este ponto é problemático, na medida em a completa inexistência de autorização pressupõe, naturalmente, a inexistência de qualquer relação administrativa prévia na qual se possa basear o pedido, tanto na sua vertente inibitória como ressarcitória. Se essa relação existisse, o litígio seria atribuído à jurisdição administrativa por via da alínea b). Do mesmo modo, não se verifica qualquer acção ou omissão por parte da Administração, o que levaria á aplicação da alínea l). Aqui, a Prof. defende que a jurisdição administrativa apenas será competente se o autor demonstrar que alertou as autoridades e estas se remeteram à inércia, caso em que “analogamente à previsão do art. 37º/3 CPTA, poderá dar-se a captação do litígio pelo foro administrativo, uma vez consubstanciada, formal e circunstanciadamente, a omissão de agir, devendo a acção administrativa comum ser proposta contra o privado prevaricador e contra a Administração que relaxou o os seus deveres de fiscalização, feita a prova da inércia”. O Prof. Mário Aroso de Almeida, diversamente, entende que estas situações correspondem a uma violação do dever de agir da Administração, o que enquadraria a questão no domínio administrativo.

e)     Ofensa a normas jus-ambientais decorrente da exploração de uma actividade, por um privado, dotado de autorização validamente concedida, mas abusando dos seus termos. Em primeiro lugar, se o privado actuar dentro dos limites da autorização, e, mesmo assim, causar dano ao ambiente, impõe-se analisar o preenchimento dos requisitos da responsabilidade objectiva, previstos no art. 20º/3 RPRDE. Se não for o caso, e partido do princípio de que a legalidade da autorização não foi posta em causa, a jurisdição competente, entende a Prof., será a dos tribunais comuns, independentemente de o pedido se destinar à cessação ou à reparação do eventual dano ecológico. A alternativa do foro administrativo apenas seria equacionável caso o autor prove denúncia prévia às autoridades competentes.

f)     Ofensa a normas jus-ambientais “que redunda numa alteração adversa mensurável a um estado-dever de um componente ambiental”, como fauna e flora protegidas, água, solo e atmosfera, por um privado e denunciada pelo proprietário do bem, prejudicado na sua esfera jurídica, patrimonial e não patrimonial. A Prof. afirma que, nestas situações, a dimensão patrimonial do bem consome a sua dimensão ecológica, de modo que a reparação do dano deverá ser exigida perante o foro comum, uma vez que o objecto do processo se traduz na indemnização de um dano qualificável como privado pelo autor. É feita a reserva de que se o autor do dano, mesmo que perspectivado na sua dimensão patrimonial, for uma entidade pública, a jurisdição pertencerá aos tribunais administrativos, não através do art. 4º/1/l) ETAF, mas pela alínea h) do mesmo art., que remete para o regime substantivo da lei 67/2007, de 31 de Dezembro, tratando-se de um acto de Direito Público. De resto, este caso afasta qualquer possibilidade de chamamento da jurisdição administrativa.

Definitivamente afastados da jurisdição administrativa ficam os litígios que envolvam a aplicação de sanções contra-ordenacionais e medidas cautelares, tal como questões referentes a direitos de personalidade. Esta afastamento estende-se a acções cujos intervenientes sejam, exclusivamente, privados, estando em causa a defesa de interesses individuais, ainda que com reflexos em matéria ambiental.

Em conclusão, a Prof. Carla Amado Gomes defende que o carácter público, e a inserção do interesse na defesa e promoção dos bens ambientais numa lógica de solidariedade colectiva, torna preferível o enquadramento das questões ambientais no âmbito da jurisdição administrativa. Existe, deste modo, interesse público na prevenção e reparação de eventuais danos com repercussão na comunidade, que deve ser claramente diferenciado face à tutela de direitos individuais. Se a distinção não for clara, o sistema corre o risco de permitir o aproveitamento abusivo, por particulares, de acções que visem a reparação de danos ambientais, com prejuízo dos bens comunitários que se pretende proteger. 

Bibliografia:

.”Introdução ao Direito do Ambiente”, Carla Amado Gomes

.”Textos Dispersos de Direito do Ambiente – I Volume”, Carla Amado Gomes

.”Verde Cor de Direito”, Vasco Pereira da Silva

.”Justiça Administrativa”, José Carlos Vieira de Andrade

.”Tutela jurisdicional em matéria ambiental” in “Textos de Direito do Ambiente”, Mário Aroso de Almeida

.”Manual de Processo Administrativo”, Mário Aroso de Ameida

João Nuno Alves Monteiro Gonçalves Casquinho, nº 18197, subturma 5

Sem comentários:

Enviar um comentário