sábado, 3 de maio de 2014

Responsabilidade por danos ambientais: 2 in 1


I.                   Considerações gerais

Em 2004 a União Europeia, na ânsia de responder aos problemas de responsabilidade ambiental, cria uma Directiva cuja obrigação de transposição no ordenamento jurídico teria termo a 30 de Abril de 2007. Certo é que, só em 29 de Julho de 2008 é que o Estado Português efectivamente transpõe a Directiva n.º 2004/35/CE no DL 147/2008. Este novo regime, que põe fim ao anterior regime jurídico da responsabilidade civil ecológica, consagra um grau de responsabilização com base nos princípios fundamentais de Direito do Ambiente: o poluidor-pagador e desenvolvimento sustentável.1
Contudo, na transposição da Directiva para o nosso regime jurídico, no DL 147/2008 (adiante, RJRDA, - Regime Jurídico da Responsabilidade por Danos Ambientais) o legislador nacional tendeu a contrapor um regime criado, fundamentalmente, na reparação in natura pela Directiva a um regime acrescido de responsabilidade pelas lesões aos indivíduos, em jeito de ressarcimento – típico da responsabilidade civil. Por um lado encontramos na Directiva uma ideia de atribuir às entidades administrativas – no caso, a APA, Agência Portuguesa para o Ambiente – o dever de regulamentar, fiscalizar e sancionar pela prática de danos ambientais. Este aspecto também é regulado no RJRDA 2 mas o legislador vai mais além quando, no Capítulo segundo prevê apenas uma relação entre o operador-poluidor e o lesado.
Encontramos, por isso, dois mecanismos de responsabilização, diferentemente da Directiva 2004/35/CE. Autores afirmam tratar-se de um regime bicéfalo ainda que venha a melhorar o sistema de responsabilização por danos ambientais. 3
Faremos, de seguida, uma análise resumida do que se passa, afinal, em cada um dos regimes de responsabilidade adoptados no RJRDA.

II.                Responsabilidade Civil

Ab initio, é preciso fazer-se um enquadramento de evolução doutrinal no que toca à responsabilidade civil nos termos do Código Civil e à possibilidade de se falar dela no que respeita aos danos ambientais. Certo e sabido é que, no seio do art. 483,º do Código Civil( adiante, CC) , é necessário que haja violação de direitos. Ora, importa saber que, nos termos do art. 202.º/2 CC as coisas que são por natureza insusceptíveis de apropriação individual estão fora do comércio e fora também do objecto de direitos privados. A verdade é que tem-se entendido que, por se equiparar aos outros bens limitados e escassos, é necessário que haja uma preocupação acrescida, em termos de regulamentação e de actuação do Estado para a sua protecção. Além da consagração Constitucional no seu art. 66.º, há um reconhecimento do direito ao ambiente como um direito subjectivo e o ambiente como bem jurídico. Só assim poderemos falar em responsabilidade civil no âmbito dos danos ambientais.
Este regime encontra-se regulado do art. 7.º a 10.º do RJRDA. Contudo, encontram-se várias dificuldades na análise dos pressupostos típicos a preencher – existência de um facto voluntário; a ilicitude; a culpa; o dano e o nexo de causalidade.
Antes de avançarmos, referir que este regime também prevê uma responsabilidade objectiva, de acordo com o art. 7.º do RJRDA, ou seja, independente de culpa ou dolo.
A doutrina não encontra grandes problemas para os primeiros três pressupostos, mas a discussão é essencialmente para a averiguação do i) dano e do ii) nexo de causalidade. 4
Quanto i) dano, faz-se a distinção entre danos ambientais e danos ecológicos: “referindo que os primeiros são aqueles em que se verifica lesão de bens jurídicos concretos, através de emissões particulares ou de um conjunto de emissões emanadas de um conjunto de fontes emissoras e que os segundos são lesões intensas causadas ao sistema ecológico natural, sem que tenham sido violados direitos individuais.”5
Entende-se então que quanto aos danos ecológicos, por não se poder encontrar um sujeito causador do próprio dano ou um lesado individual, estes danos não estão sujeitos ao instituto da responsabilidade civil, ainda que se sugira uma actuação estatal ao nível do princípio do poluidor-pagador. Conclui-se então, que só serão alvo de responsabilização civil os danos ambientais. Sabe-se, porém que se prefere a reparação in natura ao próprio ressarcimento pela lesão. O art. 10.º/1 RJRDA dá entender que só haverá lugar a indemnização nos casos em que essa reparação não se efectiva. A verdade é que a articulação é mais complexa do que parece ser. Entendemos assim, na esteira do Prof. Tiago Antunes 6 que o regime distingue, ou pretende distinguir a actuação simultânea ou não do tipo de dano em causa. Ou seja, se se tratar de um dano ambiental ou ecológico, cada um seguirá o seu tipo de responsabilização, no seio do regime jurídico em análise; se se tratar duma sobreposição dos dois danos, o que acontecerá é que se aplicará primeiramente as medidas de reparação do Capitulo III e, subsidiariamente, o que dispõe o art. 10.º/1 do RJRDA. Trata-se de saber se, num primeiro momento, na reparação, os danos individuais também são abrangidos e das duas uma: se forem não passamos para a responsabilidade do Capítulo II, se não foram avançamos para a aplicação da responsabilidade civil. O que não pode haver e, tanto a Directiva como o RJRDA ressalvam é a duplicação da cobrança de custos.
Quanto ao ii) nexo de causalidade, o problema complica-se. De acordo com a doutrina do escopo da norma violada, imputa-se ao agente por meio da conditio sine qua non os danos das normas violadas. Mas, em termos de danos ambientais, esta conditio é difícil de obter. O entendimento geral é de que deva basear-se em termos estatísticos – causalidade estatística, de forma a facilitar a imputação, ou nos casos de alternatividade, imputar a todos os concorrentes.7 Quanto à aceitação da causalidade estatística, de acordo com o regime das presunções judiciais do CC, ela é possível, numa visão do Prof. Menezes Leitão8. Contudo, relativamente à alternatividade, propõe antes a transposição das teorias anglo-saxónicas do market-share liability (responsabilidade segundo a quota de mercado) ou da pollution-share liability (responsabilidade segundo o nível das emissões poluentes) em contraposição com o previsto no art. 4.º/2 RJRDA.
No seio da nova Lei de Base de Ambiente, Lei nº 19/2014, faz-se referência ao direito de indemnização nos art. 3.º/f) e art. 7.º/2/c). Deixa de existir um artigo igual à redacção do art. 41.º da antiga Lei de Bases, Lei nº 11/87 que consagrava a responsabilidade objectiva.

III.             Responsabilidade administrativa pela prevenção e reparação de danos ambientais

De acordo com os arts. 11.º e ss. do RGRDA, prevê-se uma responsabilidade por danos ecológicos puros, em prol da Directiva transposta.  Comparando com o regime antes exposto, estes artigos referem-se apenas à tutela da natureza.
A ideia fulcral de reparação que deriva da Directiva é a de reposição do estado inicial do meio-ambiente, não já a ideia de compensação pela lesão ao indivíduo. Este princípio geral vem consagrado nos arts. 5.º e ss da Directiva e concretizados no seu anexo II.
Analisando o Anexo II, percebemos, portanto que, de acordo com o art. 2.º /11 da Directiva, há uma distinção entre i) danos causados à água, às espécies e habitats naturais protegidos e os ii) danos causados ao solo.
De acordo com a i), são três os tipos de reparação a que há lugar: primária, complementar e compensatória. Sendo que a primária se trata de qualquer medida de reparação que restitui os recursos naturais e/ou os serviços danificados ao estado inicial, ou os aproxima desse estado; a complementar entende-se como qualquer medida de reparação tomada em relação aos recursos naturais e/ou serviços para compensar pelo facto de a reparação primária não resultar no pleno restabelecimento dos recursos naturais e/ou serviços danificados e a compensatória como qualquer acção destinada a compensar perdas transitórias de recursos naturais e/ou de serviços verificadas a partir da data de ocorrência dos danos até a reparação primária ter atingido plenamente os seus efeitos.
Repara-se que a preocupação aqui suscitada é a de repor a situação ecológica antes tida, não pagamento de indemnizações. Há, pois a “reconstituição do status quo ante ou, quando / enquanto tal não for possível, uma compensação in natura.” 10
O que acontece a partir desta ideia de reparação não é, nem poderia ser, a de indemnização como a conhecemos do Código Civil e do que anteriormente foi dito, no seio dos danos ambientais. Aqui a ideia é mais a de obrigar as empresas poluentes a medidas de prevenção dos danos ecológicos e à consequente reparação, em casa de incumprimento. Não há a ideia de compensação monetária, mas a ideia de “compensação ambiental”,
Na transposição da Directiva, desta vez, o legislador não alterou a ideia substancial. Acontece tudo nos mesmos parâmetros, de acordo com o Capítulo terceiro. Estão previstas as medidas de prevenção, cfr art. 14.º RJRDA e as de reparação, de acordo com os arts. 14.º e 16.º do mesmo regime.
Com a prevista intervenção da APA, outra das possibilidades que existem no seio da reparação por danos ambientais é a possibilidade de aplicar contra-ordenações, cfr. art 26.º RJRDA. E a verdade é que só se baseiam em ilícitos do próprio capítulo, demarcando mais uma vez a distinção da responsabilidade civil do Capítulo segundo.
Concluindo que, o que está em causa na Directiva e no Capítulo III é um regime de deveres dos operadores, sob pena da aplicação de sanções, para a prevenção e reparação dos danos ambientais. A responsabilidade também pode ser objectiva (art. 12.ºRJRDA) e subjectiva (art.13.º RJRDA) tal qual o capítulo II. A objectiva imputa-se a todos os operadores e actividades presentes no Anexo III, independentemente da culpa; enquanto a subjectiva necessita do comportamento censurável ou menos cuidadoso das actividades não previstas no Anexo, mas por operadores lá previstos.




1.       A Directiva, no seu considerando segundo, refere com clareza: “A prevenção e a reparação de danos ambientais devem ser efectuadas mediante a aplicação do princípio do poluidor-pagador, previsto no Tratado e em consonância com o princípio do desenvolvimento sustentável.”
2.       De acordo com o Capítulo terceiro do DL 147/2008.
3.       Como se depreende in TIAGO ANTUNES, “ Da natureza jurídica da responsabilidade ambiental”, Actas do Colóquio – A responsabilidade civil por dano ambiental, e-book, ICJP; Contrariamente a CARLA AMADO GOMES, “De que falamos quando falamos de dano ambiental? Direito,mentiras e crítica”, Actas do Colóquio – A responsabilidade civil por dano ambiental, e-book, ICJP
4.       Ainda que se acrescente o cálculo do quantum indemnizatório que não analisaremos aqui.
5.       Cfr. MENEZES LEITÃO, in “ A responsabilidade civil por danos causados ao ambiente”, Actas do Colóquio – A responsabilidade civil por dano ambiental, e-book, ICJP
6.       Cfr. TIAGO ANTUNES, in “ Da natureza jurídica da responsabilidade ambiental”, Actas do Colóquio – A responsabilidade civil por dano ambiental, e-book, ICJP
7.       Nomeadamente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in "Tutela do Ambiente e Direito Civil", Direito do Ambiente, Lisboa, 1994
8.       Cfr. MENEZES LEITÃO, in “ A responsabilidade civil por danos causados ao ambiente”, Actas do Colóquio – A responsabilidade civil por dano ambiental, e-book, ICJP
9.       Cfr. ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, in Causalidade e Imputação na Responsabilidade Civil Ambiental, Coimbra, Almedina, 2009, e ANTÓNIO BARRETO ARCHER, in Direito do Ambiente e Responsabilidade Civil, Coimbra, Almedina, 2009.

10.    Cfr. TIAGO ANTUNES, in “ Da natureza jurídica da responsabilidade ambiental”, Actas do Colóquio – A responsabilidade civil por dano ambiental, e-book, ICJP

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