sábado, 17 de maio de 2014

O princípio do poluidor-pagador: muito mais do que um princípio...



O princípio do poluidor-pagador: muito mais do que um princípio...


O presente princípio, acolhido na nossa Constituição pelo artigo 66º, nº 2, alínea h) é um dos princípios basilares norteadores do direito do ambiente. A ideia elementar que lhe está subjacente é a de que qualquer sujeito que pratique uma qualquer actividade poluente retirando, na maior parte dos casos, um benefício dessa mesma prática, deverá compensar financeiramente os prejuízos causados a toda a comunidade. Como qualquer análise puramente teórica se tornará desligada da realidade e, nesse sentido, desprovida de interesse prático, vejamos como se concretiza este princípio em termos materiais.

Atentemos à Directiva 35/2004/CE de 21 de Abril, do Parlamento Europeu e do Conselho, posteriormente transposta para o ordenamento jurídico português pelo DL 147/2008 de 29 de Julho – Regime Jurídico da Responsabilidade por Danos Ambientais (doravante RJRDA). A Directiva assenta, precisamente, no princípio do poluidor-pagador (PPP), concretizando-o através da consagração da responsabilidade ambiental por danos ecológicos. É importante deixar clara a distinção entre dano ecológico e dano ambiental, sendo que o primeiro será todo o dano causado a um recurso natural que afecte o meio-ambiente e perturbe o equilíbrio ecológico e o segundo já será um dano individual na esfera jurídica de um determinado sujeito, designadamente por deterioração de um espaço seu que constitua uma afectação do seu direito de propriedade. Esta Directiva apenas consagra a responsabilização por danos ecológicos, excluindo qualquer indemnização por danos pessoais. Apesar da similitude do nosso DL este prevê, ao contrário da Directiva, a indemnização por danos ambientais (pessoais).

A teleologia deste princípio, ou seja, os seus fins são, sobretudo, três: prevenir lesões ambientais; repará-las, quando as haja; e operar uma redistribuição dos custos que as medidas de protecção do ambiente acarretam. Há, porém, quem critique o PPP, considerando que este configura uma ‘compra do direito de poluir’, como o faz Gilles Martin[1]. Isto porque, desta forma, o agente poluidor teria a liberdade de optar pela solução que entendesse mais vantajosa para si: ou continuar a poluir, suportando um custo económico que, face à possibilidade de manutenção dos níveis de produção, poderia compensar-lhe mais; ou não o fazer, não o suportando mas, eventualmente, acarretando tal decisão uma diminuição da sua produção. Contudo, embora esta margem de liberdade seja, efectivamente, introduzida, parece-me que a afirmação de Gilles Martin não olha para o PPP como um todo, buscando a sua essência e teleologia, procurando antes concluir pela primeira evidência indiciada pelo princípio. Parece-me mais que o PPP se destina a aplicar às situações em que, após um momento inicial no qual se verifica uma frustração da função preventiva ou inibitória, resta garantir uma efectiva reparação do dano, imputando-se o mesmo ao agente poluidor.

A principal função do PPP, que será analisada de seguida a propósito da Directiva e do DL 147/2008 é a função reparatória, na medida em que só existe uma verdadeira aplicação daquele quando ocorre uma lesão concreta ao ambiente, que desencadeia a responsabilização. Contudo, ainda que indirectamente, não podemos esquecer que os custos que poluir implica poderão constituir, muitas das vezes, um meio inibidor de condutas poluentes e, nessa medida, concretizar-se a função preventiva do princípio.

A Directiva 35/2004/CE consagra materialmente o PPP através da previsão da restauração natural: visa-se, através desta, atingir-se uma situação o mais próxima possível daquela que existia anteriormente à ocorrência do dano. Esta mesma restauração natural pode concretizar-se de duas maneiras distintas: ou através da restauração ecológica; ou mediante compensação ecológica. A restauração ecológica (ou recuperação in natura) visa a recuperação do recurso natural concretamente afectado. O agente poluidor terá que recuperar todas as funções desse mesmo recurso que a sua conduta destruiu. Contudo, tal nem sempre se revela possível, designadamente quando a conduta danosa extinga uma determinada espécie. Nestes casos, e em todos aqueles nos quais qualquer tentativa de reconstituição do recurso afectado se revele economicamente inviável ou manifestamente desproporcional, fará sentido optar-se pela compensação ecológica. Através desta procura-se, em alternativa à recuperação in natura, operar uma substituição do recurso afectado ou perturbado por outro funcionalmente equivalente de modo a repor, dentro dos possíveis, o equilíbrio ecológico perdido com a conduta danosa. Tal sucedeu, entre outros, no ‘Caso das Cegonhas de Coruche’ no qual o agente, na sequência da destruição de ninhos de cegonhas, foi condenado a um ressarcimento mediante compensação ecológica: financiar a criação de um habitat artificial que substituísse, dentro dos possíveis, os ninhos derrubados.

Pode, ainda assim, verificar-se a impossibilidade da concretização da restauração natural em sentido amplo (que abarca tanto a restauração ecológica quanto a compensação ecológica). Nestas situações, existe ainda uma terceira alternativa: a indemnização pecuniária. Trata-se de mais uma concretização do PPP, mediante a qual se procura determinar o valor económico do bem ambiental afectado, o qual corresponderá à indemnização a pagar pelo agente responsabilizado. Esta indemnização terá como destino um Fundo Ambiental próprio (no caso português, o Fundo de Intervenção Ambiental), fundo esse cujos montantes recebidos serão direccionados apenas e só para medidas de carácter ambiental. Haverá uma primazia no sentido da aplicação do montante arrecadado no local concretamente afectado. No entanto, caso tal não seja viável, pode o mesmo ser reposto noutra área, desde que tal contribua para repor, efectivamente, o equilíbrio ecológico perdido.

À luz do nosso ordenamento jurídico o DL 147/2008, ao transpor a Directiva, possui um carácter, em muitos aspectos, idêntico ao daquela. Consagra, no seu Anexo V, a restauração natural como concretização do PPP. Esta pode assumir três facetas: reparação primária (equivalente à restauração ecológica); reparação complementar (correspondente à compensação ecológica) e reparação compensatória (indemnização pecuniária). Uma ressalva quanto ao conteúdo desta última, ligeiramente diferente do da indemnização pecuniária da Directiva, na medida em que o diploma caracteriza-a como a ‘acção destinada a compensar perdas transitórias de recursos naturais (...) a partir da data de ocorrência dos danos até a reparação primária ter atingido plenamente os seus efeitos’. Ora, verifica-se aqui uma espécie de articulação da reparação primária (ecológica) com a reparação compensatória (indemnização pecuniária), como se esta última apenas tivesse aplicação em complemento da primeira. Mas, tal como já vimos, nem sempre será possível operar uma restauração natural, situação na qual a reparação compensatória será a única alternativa viável, mesmo que aplicada de modo isolado.

São muitos os autores que identificam o conteúdo material do PPP com a responsabilidade civil. Franco Giampietro[2] afirma mesmo que ‘a responsabilidade civil por danos ao ambiente é a mais fiel aplicação do princípio comunitário do poluidor-pagador’. Tal afirmação pressupõe uma espécie de insindicabilidade entre um e outro. Contudo, não me parece inteiramente correcto identificar o conteúdo do PPP com o da responsabilidade civil. Com efeito, é através da responsabilidade civil que o PPP se materializa, ganhando uma efectiva aplicação: o agente que polui terá de indemnizar pelos danos causados ao bem colectivo ambiente, na sequência da sua conduta. Mas, ainda assim, não se devem confundir. Embora os dois ‘andem de mãos dadas’, cada um possui um conteúdo distinto e autónomo.

A responsabilidade aqui em causa será uma responsabilidade objectiva ou pelo risco: não interessa se o agente que poluiu procedeu ou não com culpa, agiu ou não licitamente (autorizado pela autoridade competente). Basta que tenha causado dano, dano esse apurado segundo um nexo de causalidade que consagra a teoria da causalidade adequada, exigindo um critério de mera probabilidade de aptidão do facto a produzir o dano verificado (artigo 5º do RJRDA) para que se constitua um dever de indemnizar. Assim, haverá responsabilidade objectiva caso a actividade em causa seja uma das elencadas no Anexo III, por remissão do artigo 12º do RJRDA.

Podemos, desta forma, afirmar que o princípio do poluidor-pagador assume uma relevantíssima dimensão prática no sentido de uma inibição de futuras condutas poluentes mas, principalmente, na implementação, mediante o instituto da responsabilidade civil objectiva, de mecanismos destinados à reparação efectiva dos danos causados ao ambiente. É esta vertente pragmática do princípio – que lhe dá um conteúdo material efectivo – que faz com que ele seja, como afirmamos no título, muito mais do que um princípio.



Referências bibliográficas:

- AMADO GOMES, Carla; ‘A responsabilidade civil por dano ecológico - reflexões preliminares sobre o novo regime instituído pelo DL 147/2008, de 29 de Julho (in O que há de novo no Direito do Ambiente?); AAFDL, 2009.

- NOBRE FERNANDES, Teresa; ‘O princípio do poluidor-pagador’; Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Junho de 2010.

- PEREIRA DA SILVA, Vasco; ‘Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente’; Almedina, 2004.

- SOUSA ARAGÃO, Alexandra; ‘O princípio do poluidor-pagador: pedra angular da política comunitária do ambiente’; Coimbra Editora, 1997.



Iida Ojanen Ferreira Alves, nº 20773


[1] MARTIN, Gilles; ‘Direito do Ambiente e Danos Ecológicos’ (in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 31); Março de 1991.
[2] GIAMPIETRO, Franco; ‘La Responsabilità per Danno all’Ambiente’; Milano, 1988.

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