I.
Colocação do problema
No Regime da Responsabilidade Civil por Dano Ecológico, regulado pelo
Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29 de Julho, o estabelecimento do nexo de causalidade entre as causas do dano
e o dano efetivamente verificado torna-se, muitas vezes, uma tarefa difícil. O
Decreto-Lei em causa define somente, no artigo 5.º, uma causalidade adequada[1]
aliada à prova científica do percurso causal[2],
mas não toma posição quando aos casos de causalidade alternativa ou de multicausalidade[3],
quando vários sujeitos podem ter concorrido para o dano: “o domínio do concurso de imputações é uma outra área onde o legislador
não consagrou qualquer regra de alcance geral, com uma solução adequada à
especificidade da responsabilidade por danos ambientais e ecológicos”.[4] E,
o artigo 4.º o Decreto-Lei limita-se a resolver a questão da repartição da
responsabilidade entre os sujeitos cuja responsabilidade seja previamente apurada. Porém, fica por
determinar quais os sujeitos, que são solidariamente, responsáveis nos casos
típicos de multicausalidade - “causalidade cumulativa, potenciada ou
sinergética e alternativa”[5].
Posto isto, o que fazer? Certo é que tendo em conta “a necessidade de tutela do ambiente e o papel que nessa área a
responsabilidade civil é susceptível de desempenhar”[6],
o princípio da prevenção exige que os danos sejam preventivamente evitados, por
forma a proteger mais eficazmente o ambiente, não sendo bastante reagir sobre
os efeitos nocivos já verificados. Ora, como a responsabilidade civil tem uma
clara função de prevenção constitui
“instrumento fundamental na tutela jurídica do ambiente”[7].
II.
Questão prévia: a
Imputação
Fora desta análise ficam as clássicas teorias sobre o nexo de causalidade “a conditio sine qua non, à causalidade
adequada e à teoria do fim da norma”, pois assentam numa causalidade
naturalística que ao Direito do Ambiente não interessa[8].
Como se faz a imputação no âmbito da responsabilidade civil por danos
ambientais?
Sugerimos que o critério a adotar[9]:
(i) cumpra a finalidade de seleção dos danos a atribuir ao agente, limitando a
respetiva responsabilidade; (ii) seja conformado em razão das exigências da
tutela ambiental – deva ser compatível e procurar cumprir as suas finalidades;
(iii) que seja juridicamente operativo: “deve
funcionar como efectivo instrumento jurídico útil na tarefa de identificação do
nexo de causalidade no caso concreto”[10].Ora, é precisamente em relação a estes
requisitos, que as teorias naturalísticas falham, pelo que é necessário
encontrar outra teoria.
Uma solução possível é a avançada por Ana
Perestrelo de Oliveira[11]
e aceite por Carla Amado Gomes[12]: o critério de imputação deverá assentar
numa lógica de risco, pois toda a
prevenção é fundada na ideia de um risco aceitável pela comunidade, para além
de ser especialmente adaptável ao domínio do ambiente, por ser bastante
flexível. Então, por risco, podemos entender,
segundo Menezes Cordeiro, que se
trata de “uma eventualidade danosa
potencial”[13],
ou seja, é a suscetibilidade de ocorrência de um dano. Este entendimento vai ao
encontro do que se tem compreendido relativamente à presunção de causalidade[14]. De facto, quando se conclui que
determinada atividade é apta a
provocar determinado dano no ambiente e, como tal, deve ser estabelecida uma
presunção de causalidade, caso se verifique, efetivamente, um dano, então “esta aptidão para causar o dano, avaliada
em concreto[15],
corresponde justamente (…) à criação ou aumento do risco”[16].
A posição supra referida é igualmente reiterada por Vasco Pereira da Silva que defende: se não pode o princípio
da prevenção significar “um abandono da
lógica causal em matéria de ambiente (…) já fará todo o sentido considerar que,
por exemplo, no domínio da responsabilidade ambiental, dada a dificuldade em
determinar rigorosamente as relações de causa-efeito entre o acto ilícito e
dano (…) mas havendo alguém a quem possa ser imputada uma actividade ilícita e
que esteja em condições de ter provocado tais danos, o Direito do Ambiente
possa estabelecer uma presunção de causalidade, ou introduzir alguma flexibilidade
nos critérios de determinação do nexo causal”[17].
Adotando-se a teoria da conexão do
risco[18]
– sendo o risco a forma de flexibilizar os critérios de determinação do nexo
causal[19]
- o resultado deve ser imputado ao agente quando a conduta do autor tenha
criado ou aumentado um risco juridicamente não permitido, e esse risco se tenha
vindo a materializar no resultado lesivo. Por esta via, torna-se possível
excluir “a imputação quando falta a
criação ou aumento do risco para o bem jurídico”[20],
principalmente nos casos em que há uma diminuição
do risco ou quando o risco criado se encontre na esfera do, considerado, risco permitido, bem como nos casos em
que o resultado materializado não é o correspondente ao risco criado, mas de um
outro risco.
Efetivamente, esta construção afigura-se proveitosa e adequada para a
descoberta de um critério ou teoria de imputação, nos termos atrás exigidos.
Assim, podemos considerar, de acordo com Ana
Perestrelo de Oliveira, que o dano ambiental – em sentido amplo ou
restrito – “é imputável ao agente quando
a conduta deste cria ou aumenta um risco não permitido ou previsto na
fattispecie legal, sendo o resultado ou evento danoso materialização ou
concretização desse risco”[21]
– sem esquecer que deverá ser suscetível de provocar danos, evidentemente, aos
bens jurídicos tutelados pelo Direito do Ambiente[22].
III.
A Causalidade
O presente estudo visa esclarecer alguns dos problemas levantados em torno
da multicausalidade. Sabemos que
estes devem ser resolvidos através da ponderação dos diversos interesses
conflituantes e, para tal, devemos atender às seguintes teorias: (i) teoria da causalidade cumulativa; (ii)
teoria da causalidade aditiva, potenciada ou sinergética; (iii) e teoria da
causalidade alternativa.
Sendo que, efetivamente, interessa garantir a tutela do ambiente por meio
de responsabilidade civil – a qual reclama que o dano seja imputado a todos os
agentes co-envolvidos no processo causal. Solução contrária permitiria que na “quase totalidade dos danos ambientais, os
diversos agentes se eximissem à responsabilidade com pretexto na eventual
responsabilidade de outrem”[23]
– o que colocaria em causa a finalidade preventiva da responsabilidade civil.
(i)
Da causalidade cumulativa
Esta causalidade ocorre quando o dano resulta da conjugação da atuação de
vários agentes, separadamente, sendo certo que sem a atuação de um agente, o
dano já não se produziria[24].
Ou seja, a conduta de cada agente é conditio
sine qua non do dano: se suprimíssemos mentalmente a atuação dalgum agente,
o dano já não se produziria.
Esta seria uma solução desejada, porém Ana
Perestrelo de Oliveira chama a atenção para o seguinte problema: “como justificar (…) que ao agente que só
limitadamente contribui para a lesão – e que isoladamente não a produziria –
fosse atribuída a responsabilidade pela totalidade do dano?”[25]. Posto
isto já se evoluiu no sentido de limitar a responsabilidade àqueles agentes que
conhecessem o contributo causal dos demais agentes envolvidos no processo –
mas, mesmo assim, esta posição não tutela devidamente o ambiente.
(ii)
Da causalidade aditiva, potenciada ou sinergética
Nestes casos, o dano já se produziria de qualquer forma, independentemente
do contributo do agente. Porém, a sua conduta cooperou para a produção do dano.
Ou seja, a conduta poluente do agente está envolvido num processo poluente mais
vasto, sendo que contribui para o agravamento/aumento do dano ambiental. Daí a
referência a uma causalidade potenciada ou
sinergética, pois com os contributos
do agente o efeito lesivo é reforçado. Sendo que também não há duvidas quanto à
responsabilização de todos os agentes envolvido: cada um com a tua conduta
aumenta, multiplica ou acelera o evento danoso não permitido pela disposição
legal.
(iii)
Da causalidade alternativa
Esta causalidade reporta-se àqueles casos em que várias instalações estão
em condições de ter causado o dano, sabe-se que algumas daquelas o causaram,
mas não se consegue precisar qual ou quais[26].
Ou seja, trata-se de casos de autoria
incerta, dentro dum núcleo certo de pessoas. Este problema é complexo pois “vários agentes podem ter causado um dano,
já que todos levaram a cabo acções potencialmente lesivas, um deles (pelo
menos) causou efectivamente esse dano, mas não é possível determinar em
concreto qual (ou quais)”[27].
Desta forma, uma das soluções poderia ser a desresponsabilização de todos
os agentes, quando não fosse possível imputar, em concreto, a responsabilidade
a pelo menos um, não se preenchendo o nexo de causal exigido pela
responsabilidade civil. Porém, esta solução não é satisfatória e “no caso dos danos ambientais compreende-se
bem a gravidade” de uma solução assim[28].
Contra a suscetibilidade de imputar os danos aos diversos intervenientes
pronuncia-se Menezes Leitão[29];
a favor da adoção de um preceito similar vigente no Direito Alemão, Henrique Antunes[30];
e a favor da responsabilização de todas as instalações, Calvão da Silva[31]
considera o dano imputável a todos os “responsáveis
prováveis” do dano, bastando “a prova
de uma probabilidade razoável de o requerido ser responsável no caso concreto”;
e bem assim, Menezes Cordeiro[32]
considera que “está em aberto a hipótese
de responsabilizar as duas” (instalações).
IV.
Crítica. Posição adotada
Em relação à causalidade cumulativa,
não deve haver dúvidas quanto à necessidade de responsabilizar todos os agentes
envolvidos no curso causal da produção de um dano, mesmo que só parcialmente.
De facto, cada agente produz um dano e ao produzi-lo agrava/aumenta o risco da
verificação do facto total. Mesmo que se exija o conhecimento do contributo dos demais agentes, este não passaria
duma mera exigência de consciência da aptidão danosa dos factos, ao abrigo do
princípio da prevenção, seja de forma isolada, seja conjugadamente com os
factos de terceiros. Por isso, de acordo com Ana
Perestrelo de Oliveira “quando
haja causalidade cumulativa, todos são responsáveis: todos aumentaram o risco
que se materializou no resultado”[33].
No que concerne à causalidade
aditiva, potenciada ou sinergética, duvidas também não há de que todos os
agentes em causa devem ser responsabilizados pelas suas atuações contrárias ao
previsto na norma legal, que proíbe ou limita a produção de danos. Perante esta
teoria poderão colocar-se dúvidas relativamente à repartição concreta da
responsabilidade – o que será analisado adiante.
Por fim, relativamente à causalidade
alternativa surgem mais problemas. No entanto, penso que a solução a adotar
deverá passar pela possibilidade de responsabilização das instalações que
potencialmente provocaram o dano. E porquê? De acordo com Ana Perestrelo de Oliveira e Menezes Cordeiro, estão em causa ações
dos agentes que são potencialmente lesivas, mas difíceis de imputar à produção
do dano, pelo que se há vários agentes que podem ter causado um dano, “todos os agentes criaram ou aumentarem o
risco não permitido (…) ou previsto na norma legal” [34].
Ora, este entendimento, aliado a uma presunção de imputação[35],
permite o estabelecimento do tão ambicionado nexo causal, com a consequente
possibilidade de responsabilização dos agentes. Assim, “o juiz deve presumir a imputação quanto a todos os sujeitos que
aumentam (pelo menos em abstracto) o risco de lesão”[36]. Sendo
esta construção a que melhor permite
tutelar o ambiente.
Assim, repartição concreta da
responsabilidade - responsabilidade solidária ou conjunta – é um outro
problema a resolver: já sabemos que todos os agentes envolvidos num dano são
responsáveis, mas em que medida?
A solução do artigo 4.º do Decreto-Lei aqui em causa é, de facto, “a única capaz de tutelar eficazmente o
ambiente”[37]. A consagração da regra da solidariedade de todos os intervenientes
– sem prejuízo do direito de regresso entre eles (que permitirá demonstrar as
diferentes proporções dos danos causados) - permite “evitar a transferência das dificuldades de prova da identificação dos
autores para a identificação do contributo concreto de cada um deles”[38].
Solução diversa inviabilizaria a
operatividade do instituto da responsabilidade civil ambiental, pois exigiria
que o lesado ou lesados tivessem que propor ações contra cada um dos possíveis
lesantes, na medida concreta da sua responsabilidade, tendo por base,
evidentemente, a ação lesiva no seu todo.
Finalmente, relativamente aos pequenos
poluidores[39] ou
emitentes[40], cabe
apreciar, previamente a sua conduta e concluir pela sua responsabilidade (ou
não), perguntando-se o seguinte: o agente verdadeiramente
criou ou aumentou um risco juridicamente relevante para a verificação do efeito
lesivo global? Se sim: então será responsabilizado como os demais; se não:
não deverá sê-lo, pois não é possível afirmar que aumentou o risco não
permitido ou previsto pela norma[41],
mantendo-se na esfera do risco permitido.
Não esquecemos que a imputação da responsabilidade deve seguir a fórmula da
conexão do risco, tal como já foi explicitado. Só deste modo se alcançam
soluções mais adequadas, quer à tutela do ambiente, quer em relação aos
responsáveis e aos não responsáveis, através da “função de restrição da responsabilidade”[42],
para além de se adequar tanto à responsabilidade subjetiva como à
responsabilidade objetiva. Assim, quando a norma de responsabilidade previr
determinado facto, inevitavelmente, que comportará um certo risco. Ora, será
este risco que servirá de base ao juízo de imputação: se o agente criar ou
aumentar o risco, que a norma pretende evitar, e se esse risco se materializar
no resultado danoso, então fica estabelecido juridicamente o nexo de
causalidade entre o dano e o agente.
V.
Bibliografia
Ana Perestrelo de Oliveira, Causalidade e Imputação na Responsabilidade Civil Ambiental, Almedina,
Coimbra, 2007.
Ana Perestrelo de Oliveira, A prova do nexo de causalidade na lei da responsabilidade ambiental, in
Cadernos O Direito 6, Almedina, Coimbra, 2010
António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, II,
AAFDL, Lisboa, 1980
António Menezes Cordeiro, Tutela do ambiente e Direito Civil, in Direito do Ambiente, INA, Oeiras,
1994.
Carla Amado Gomes, A Responsabilidade Civil por
Dano Ecológico: reflexões preliminares sobre o novo regime instituído pelo DL
147/2008, de 29 de Julho, in Textos Dispersos de Direito do Ambiente III,
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Carla Amado Gomes, Introdução ao Direito do
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Universidade Católica, Porto, 2003.
João Calvão da Silva, Causalidade alternativa, in
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José Cunhal Sendim, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos, in Cadernos do CEDOUA,
Almedina, Coimbra, 2002
Luís de Menezes Leitão, A tutela civil do ambiente, in
RDAOT, n.º4 e 5 (Dezembro), 1999.
Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, Almedina, Coimbra, 2005.
[1] A apreciação da prova do nexo de
causalidade assenta num critério de verosimilhança e de probabilidade de o
facto danoso ser apto a produzir a lesão verificada, tendo em conta as circunstâncias
do caso concreto e considerando, em especial, o grau de risco e de perigo e a
normalidade da acção lesiva, a possibilidade de prova científica do percurso
causal e o cumprimento, ou não, de deveres de protecção.
[2] O que dificulta, ainda mais, o estabelecimento do nexo de causalidade. Ver
melhor em Carla Amado Gomes, A
Responsabilidade Civil por Dano Ecológico…, pp. 50-51.
[9] Não devemos sustentar, no entanto, que o problema do nexo causal deva ser
captado numa rede de fórmulas precisas, num esquema de proposições abstratas,
através dos quais se possa decidir por mecânica subsunção todas as situações de
vida real.
[14] Nomeadamente no ordenamento jurídico alemão, ver melhor em Ana Perestrelo de Oliveira, Causalidade
e Imputação…, p. 76; pp. 35-46.
[15] A suscetibilidade de, em termos abstratos, determinada instalação provocar
a lesão do bem jurídico não é suficiente para se atribuir juridicamente aquele
resultado concreto ao agente, caso contrário, estaríamos perante uma violação
dos princípios fundamentais que enformam o sistema português de
responsabilidade civil. Como Ana
Perestrelo de Oliveira destaca: “pode,
naturalmente, uma instalação em abstrato criar ou aumentar o risco de lesão do
bem jurídico e em concreto não o ter criado ou aumentado”, p. 78.
[18] Nas palavras de Ana Perestrelo de
Oliveira, Causalidade e Imputação…, p. 75: “aplicada ao domínio ambiental, a fórmula da conexão de risco (…) pode
obter (…) resultados surpreendentemente satisfatórios, constituindo a mais
profícua via de resposta ao problema que analiamos”.
[19] Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito…, p. 70; Ana
Perestrelo de Oliveira, Causalidade e Imputação…, pp. 72-73.
[24] Por exemplo, quando vários agentes, separadamente, despejam no rio
quantidades de materiais poluentes em si mesmas insuficientes para provocar a
morte dos peixes. Porém, as suas condutas tidas em conjunto provocaram a morte
dos peixes – provocam o dano.
[26] Por exemplo, há causalidade alternativa, nomeadamente, quando há uma
descarga no rio – que mata toneladas de peixes – sendo que só uma de duas
fábricas o poderá ter feito sem que, todavia, se saiba qual. Ver melhor em Menezes Cordeiro, Tutela do ambiente…,
p. 396.
[34] Idem, p. 110.
[39] Cujo contributo é relativamente pequeno, tendo em conta as ações lesivas
dos demais agentes em causa.
[40] Ana Perestrelo de Oliveira, Causalidade e Imputação…, p. 112; Ana
Perestrelo de Oliveira, A prova do nexo de causalidade…, pp. 114-115.
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