Da
tutela sancionatória do Ambiente
I.
Este trabalho tem o propósito de analisar o actual regime sancionatório em
matéria de Direito do Ambiente, contrapondo os sistemas possíveis, em termos de
viabilidade prática e justificação jurídica. Proceder-se-à, num primeiro
momento, a uma consideração da tutela sancionatória por via penal, com todas as
suas implicações, e a sua sustentação perante uma alternativa de teor
contra-ordenacional. Num segundo momento, será descrita a solução do
ordenamento jurídico português, norteada por uma clara intenção de conjugar as
vantagens dos chamados “modelos exclusivistas”.
II.
Perante a susceptibilidade de recorrer a um modelo de tutela sancionatória
penal, importa atender à qualificação do Ambiente enquanto bem jurídico.
Considere-se a reconhecida descrição do Prof. Figueiredo Dias, segundo a qual “bem
jurídico é a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na
manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo
reconhecido como socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido
como valioso”. Há que avaliar o ambiente à luz da sua essencialidade e
necessidade de protecção, num contexto em que se “pressupõe um consenso social
primário, cuja existência foi ideológicamente sustentada pelo contrato social”
(Fernanda Palma). Tal releva na medida em que o âmbito de intervenção do
Direito Penal se encontra limitado pela estrita necessidade de protecção de
direitos e interesses essenciais
(18º/2 CRP), exigindo-se a avaliação de critérios reveladores de um consenso
social amplo. Nestes termos, a evolução recente das mais variadas preocupações
ambientais, algo que se traduz na sua consagração constitucional (66º CRP) e infra-constitucional,
não nos permite negar o reconhecimento do Ambiente enquanto bem jurídico dotado
de um vasto consenso social, face à gravidade da degradação ambiental na
chamada “sociedade de risco”. Mais, o ambiente é, nesta sede, considerado numa
dimensão separada de bens jurídicos que se baseiam na concreta relação entre a
pessoa e o espaço físico que a rodeia, sendo entendido como um valor em si
mesmo. Assim, o bem jurídico
ambiente é concebido de forma restritiva por ter exclusivamente como objecto de
protecção os components ambientais naturais
Por outro lado, é certo que o ambiente, enquanto bem jurídico,
goza de consagração constitucional, mas bastará essa consagração para legitimar
a intervenção da chamada ultima ratio da tutela sancionatória? O Prof. Paulo
Sousa Mendes afirma que “a Constituição não tem legitimidade para
impor ao legislador ordinário a criminalização de condutas”, independentemente da expressa consagração do
bem em causa, como é, neste caso, o ambiente. Ainda assim, o Prof. defende a
intervenção penal em domínios ambientais especialmente delimitados, devendo
recorrer-se a uma técnica legislativa rigorosa, baseada em conceitos jurídicos
determinados, para que haja “uma segura previsibilidade dos
comportamentos e com efectiva estatuição dos mesmos, sob pena de nos acharmos
enredados no seio do direito penal simbólico”. O Prof. Figueiredo Dias, por
outro lado, conclui que a necessidade de intervenção do direito penal pode
razoavelmente retirar-se da dignidade constitucional do bem jurídico ambiente.
III.
Resta, contudo, determinar qual o instrumento normativo que melhor se adequa à
tutela do ambiente enquanto bem jurídico . Em primeiro lugar, coloca-se a questão de saber se é válido, à
luz dos princípios estruturantes do Direito Penal, criminalizar condutas passíveis
de lesar o ambiente. Depois, há que avaliar a eventual eficácia da tutela
penal, quando comparada com a alternativa estritamente contra-ordenacional. O Prof. Vasco Pereira da Silva analisa a
questão, referindo uma sequência de argumentos favoráveis e desfavoráveis a
ambos os modelos. A favor da tutela sancionatória de cariz penal, o Prof.
invoca:
A) A importância simbólica, traduzida numa reforçada dignidade
jurídica da defesa do Ambiente;
B) A maior intensidade da tutela ambiental, tratando-se da mais
energética reacção do ordenamento contra actos anti-jurídicos, dado o princípio
da subsidiariedade do Direito Penal. Assim, estariam incluídas sanções
pecuniárias e penas privativas da liberdade;
C) Garantias de processo penal, como a presunção de inocência e contraditório
(27º a 32º CRP).
Contra:
A)
Inadequação do Direito Penal para a tutela do Ambiente , “pois enquanto que o
Direito do Ambiente assenta num princípio de prevenção, o Direito Penal
orienta-se, sobretudo, no sentido da repressão dos comportamentos
anti-jurídicos graves”.
B)
O facto de o ilícito ambiental admitir a imputabilidade de pessoas colectivas,
algo estruturalmente incompatível com os critérios de estrita responsabilização
individual que caracterizam o Direito Penal.
C)
O perigo de descaracterização e subalternização do Direito Penal ao Direito
Administrativo, já que a grande maioria do crimes ambientais resulta do
incumprimento de prescrições administrativas,
correndo-se o risco de transformar a Administração na autoridade competente
para controlar a aplicação da lei penal. Tal é problemático em termos de
respeito pelo princípio da reserva jurisdicional.
D)
ineficácia de um sistema sancionatório estritamente penal, com o risco de um
“défice de condenações”, resultantes de obstáculos práticos na aplicação da lei
penal.
À
via penal contrapõe-se a tutela sancionatória de teor administrativo, cujas
vantagens o Prof. enumera:
A)
Celeridade
e eficácia do procedimento administrativo na resposta punitiva.
B)
Imputação
objectiva do delito a pessoas colectivas, facilitando-se a apreciação do nexo
de causalidade.
C)
Salvaguarda
da autonomia do Direito Penal, embora se admita a atribuição de poderes
punitivos à Administração.
Contra a tutela sancionatória por via administrativa:
A)
A
diminuição das garantias de defesa dos particulares, ainda que se salvaguarde a
possibilidade de intervenção dos tribunais por via de recurso.
B)
Tendência
para a banalização das actuações delituais em matéria de ambiente, remetidas
para o universo das sanções pecuniárias.
C)
Transformação
da sanção pecuniária num mero custo da actividade económica poluente, ou seja,
surge a possibilidade de o montante das coimas não constituir elemento
dissuasor suficiente.
IV. Concluindo-se pela legitimidade, e necessidade, da intervenção penal
no domínio do ambiente, a sua aplicação, integrada num modelo exclusivista,
acarreta as já referidas desvantagens, motivo pelo qual o Prof. Vasco Pereira
da Silva defende uma combinação equilibrada entre sanções penais e sanções de
natureza administrativa: criminalização das condutas mais lesivas do ambiente,
“já que a defesa do ambiente
é parte integrante dos valores fundamentais das sociedades em que vivemos e
corresponde a exigências de realização da dignidade da pessoa humana”, com a
reserva de que tal não conduza a uma banalização do Direito Penal, pois o modo
normal de reacção contra delitos ambientais deve ser o das sanções administrativas
ou contra-ordenações. A Prof. Fernanda Palma acrescenta que o Direito de Mera
Ordenação Social “pelos meios sancionatórios que oferece (sobretudo ao nível
das sanções acessórias), e por não ser seu critério predominante de fim e
medida da sanção a culpa, mas antes a reparação do dano e a desmotivação do
infractor através do prejuízo pecuniário causado pela sanção, este ramo do
Direito oferece mecanismos ideais relativamente a condutas anti-ambientais mão
imediatamente anti-humanas ou só remotamente perigosas para os bens jurídicos
pessoais ou sociais”, devendo reservar-se a tutela penal para situações de
“substancialidade do dano, ou, pelo menos, perigo
concreto para o bem ambiente”.
VI.
Seguindo esta perspectiva de combinação entre as vias sancionatórias, o Prof.
refere que se privilegiou a via administrativa, com a consequente conformação
de um sistema preferencial. Tal resultaria da lógica e espírito do sistema,
globalmente considerado, dado o número predominante de delitos ambientais punidos
através de contra-ordenação, e a quantidade limitada de crimes ambientais.
Note-se que, em casos, o sistema parece apontar no sentido de favorecer a
tutela penal do ilícito, de que é exemplo o art. 47º/2 da Lei de Bases do
Ambiente, segundo o qual “no caso de a conduta constituir, simultaneamente, crime
e contra-ordenação, será o infractor sempre punido a título de crime, sem
prejuízo das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação”.
VII. O ordenamento jurídico-penal português consagra crimes de
carácter ambiental, no Capítulo III do Código Penal, “Dos crimes de perigo
comum”, do Título IV, “Dos crimes contra a vida em sociedade”, artigos 272º e seguintes.
Em especial:
A)
Danos
contra a Natureza (278º CP)
B)
Poluição
(279º CP)
C)
Poluição
com perigo comum (280º CP)
Em termos de estruturação típica da norma incriminadora, a Prof.
Fernanda Palma apresenta um conjunto de possibilidades, todas elas consideradas
imperfeitas pela Prof. : crimes de dever, de perigo abstracto, de perigo
concreto, de dano.
Os crimes de dever são criticáveis por se converterem em crimes
de desobediência, afectando a previsibilidade do Direito Penal e serem
inadequados à censura da culpa do facto.
Os crimes de dano pressupõem uma intervenção tardia do Direito
Penal se o dano corresponder já a uma lesão efectiva do ambiente e suscitam
dificuldades de imputação objectiva em casos de causalidade cumulativa.
Os de perigo abstracto são de difícil enquadramento num Direito
Penal de culpa. “Sendo o perigo mero motivo da incriminação, e não constando do
tipo legal do crime, a conduta proibida não tem de revelar a concreta falta de
motivação pela norma e decorrente culpabilidade do seu autor”.
Nos de perigo concreto, persiste a dificuldade em provar a
causalidade relativamente ao perigo como evento.
É de realçar, neste ponto, o modelo combinatório apresentado pelo
Prof. Figueiredo Dias: segundo o Prof. os crimes contra o ambiente deverão ser,
em simultâneo, crimes de dever (de desobediência) e de resultado (eventualmente
danoso), devendo basear-se numa conduta que actua lesivamente sobre um
componente ambiental, mas que só é penalizada na medida em que um regulamento
ou uma ordem emanados pela Administração sejam infringidos.
VIII. O Prof. Vasco Pereira da Silva afirma que uma possível
acessoriedade administrativa do Direito Penal do Ambiente (manifestada, por exemplo,
na possibilidade de se verificar uma delimitação administrativa do dano,
deixando em aberto a definição do conteúdo do bem jurídico ambiente e do
fundamento da sua tutela penal) não deverá significar “a substituição de
critérios individualizados de culpa, ou de imputação subjectiva da conduta
criminosa a um dado indivíduo, por critério meramente objectivos de verificação
de simples desobediência às disposições administrativas, devendo antes dar-se a
conjugação de ambas as dimensões para que se esteja perante um crime ecológico”.
IX.
O ordenamento jurídico português optou por esta via alternativa, baseada na
conjugação da tutela penal com a tutela contra-ordenacional do ambiente, de uma
forma que permite integrar as vantagens, e contornar as desvantagens, dos
modelos exclusivistas. Assim, temos as vantagens associadas à via
administrativa: a celeridade e eficácia da reacção punitiva, a não banalização
do Direito Penal, a imputabilidade de pessoas colectivas. Mas também as
garantias da via penal, através do direito de audiência e defesa (50º DL nº 433/82,
27 de Outubro), acompanhamento por advogado ou defensor (53º DL nº 433/82) recurso das decisões para os
tribunais (55º DL nº433/87) e sanções acessórias que apoiam a eficácia do
delito contra-ordenacional (21º e seguintes DL nº 433/82).
Bibliografia:
.“Verde Cor de Direito”, Vasco Pereira da Silva
.”Direito Penal do Ambiente – Uma Primeira Abordagem”, Fernanda
Palma
.”Sobre o Papel do Direito Penal na Protecção do Ambiente”,
Jorge Figueiredo Dias
.”Vale
a Pena o Direito Penal do Ambiente?”, Paulo Sousa Mendes
João Nuno Alves Monteiro Gonçalves Casquinho, nº 18197, subturma
5
Visto.
ResponderEliminar