domingo, 18 de maio de 2014

Da tutela sancionatória do Ambiente


Da tutela sancionatória do Ambiente



            I. Este trabalho tem o propósito de analisar o actual regime sancionatório em matéria de Direito do Ambiente, contrapondo os sistemas possíveis, em termos de viabilidade prática e justificação jurídica. Proceder-se-à, num primeiro momento, a uma consideração da tutela sancionatória por via penal, com todas as suas implicações, e a sua sustentação perante uma alternativa de teor contra-ordenacional. Num segundo momento, será descrita a solução do ordenamento jurídico português, norteada por uma clara intenção de conjugar as vantagens dos chamados “modelos exclusivistas”.

            II. Perante a susceptibilidade de recorrer a um modelo de tutela sancionatória penal, importa atender à qualificação do Ambiente enquanto bem jurídico. Considere-se a reconhecida descrição do Prof. Figueiredo Dias, segundo a qual “bem jurídico é a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo reconhecido como socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso”. Há que avaliar o ambiente à luz da sua essencialidade e necessidade de protecção, num contexto em que se “pressupõe um consenso social primário, cuja existência foi ideológicamente sustentada pelo contrato social” (Fernanda Palma). Tal releva na medida em que o âmbito de intervenção do Direito Penal se encontra limitado pela estrita necessidade de protecção de direitos  e interesses essenciais (18º/2 CRP), exigindo-se a avaliação de critérios reveladores de um consenso social amplo. Nestes termos, a evolução recente das mais variadas preocupações ambientais, algo que se traduz na sua consagração constitucional (66º CRP) e infra-constitucional, não nos permite negar o reconhecimento do Ambiente enquanto bem jurídico dotado de um vasto consenso social, face à gravidade da degradação ambiental na chamada “sociedade de risco”. Mais, o ambiente é, nesta sede, considerado numa dimensão separada de bens jurídicos que se baseiam na concreta relação entre a pessoa e o espaço físico que a rodeia, sendo entendido como um valor em si mesmo.  Assim, o bem jurídico ambiente é concebido de forma restritiva por ter exclusivamente como objecto de protecção os components ambientais naturais
Por outro lado, é certo que o ambiente, enquanto bem jurídico, goza de consagração constitucional, mas bastará essa consagração para legitimar a intervenção da chamada ultima ratio da tutela sancionatória? O Prof. Paulo Sousa Mendes afirma que “a Constituição não tem legitimidade para impor ao legislador ordinário a criminalização de condutas”, independentemente da expressa consagração do bem em causa, como é, neste caso, o ambiente. Ainda assim, o Prof. defende a intervenção penal em domínios ambientais especialmente delimitados, devendo recorrer-se a uma técnica legislativa rigorosa, baseada em conceitos jurídicos determinados, para que haja “uma segura previsibilidade dos comportamentos e com efectiva estatuição dos mesmos, sob pena de nos acharmos enredados no seio do direito penal simbólico”. O Prof. Figueiredo Dias, por outro lado, conclui que a necessidade de intervenção do direito penal pode razoavelmente retirar-se da dignidade constitucional do bem jurídico ambiente.

            III. Resta, contudo, determinar qual o instrumento normativo que melhor se adequa à tutela do ambiente enquanto bem jurídico . Em primeiro lugar, coloca-se a questão de saber se é válido, à luz dos princípios estruturantes do Direito Penal, criminalizar condutas passíveis de lesar o ambiente. Depois, há que avaliar a eventual eficácia da tutela penal, quando comparada com a alternativa estritamente contra-ordenacional.  O Prof. Vasco Pereira da Silva analisa a questão, referindo uma sequência de argumentos favoráveis e desfavoráveis a ambos os modelos. A favor da tutela sancionatória de cariz penal, o Prof. invoca:
A) A importância simbólica, traduzida numa reforçada dignidade jurídica da defesa do Ambiente;
B) A maior intensidade da tutela ambiental, tratando-se da mais energética reacção do ordenamento contra actos anti-jurídicos, dado o princípio da subsidiariedade do Direito Penal. Assim, estariam incluídas sanções pecuniárias e penas privativas da liberdade;
C) Garantias de processo penal, como a presunção de inocência e contraditório (27º a 32º CRP).
            Contra:
            A) Inadequação do Direito Penal para a tutela do Ambiente , “pois enquanto que o Direito do Ambiente assenta num princípio de prevenção, o Direito Penal orienta-se, sobretudo, no sentido da repressão dos comportamentos anti-jurídicos graves”.
            B) O facto de o ilícito ambiental admitir a imputabilidade de pessoas colectivas, algo estruturalmente incompatível com os critérios de estrita responsabilização individual que caracterizam o Direito Penal.
            C) O perigo de descaracterização e subalternização do Direito Penal ao Direito Administrativo, já que a grande maioria do crimes ambientais resulta do incumprimento de prescrições  administrativas, correndo-se o risco de transformar a Administração na autoridade competente para controlar a aplicação da lei penal. Tal é problemático em termos de respeito pelo princípio da reserva jurisdicional.
            D) ineficácia de um sistema sancionatório estritamente penal, com o risco de um “défice de condenações”, resultantes de obstáculos práticos na aplicação da lei penal.
            À via penal contrapõe-se a tutela sancionatória de teor administrativo, cujas vantagens o Prof. enumera:
A)   Celeridade e eficácia do procedimento administrativo na resposta punitiva.
B)   Imputação objectiva do delito a pessoas colectivas, facilitando-se a apreciação do nexo de causalidade.
C)   Salvaguarda da autonomia do Direito Penal, embora se admita a atribuição de poderes punitivos à Administração.  
Contra a tutela sancionatória por via administrativa:
A)   A diminuição das garantias de defesa dos particulares, ainda que se salvaguarde a possibilidade de intervenção dos tribunais por via de recurso.
B)   Tendência para a banalização das actuações delituais em matéria de ambiente, remetidas para o universo das sanções pecuniárias.
C)   Transformação da sanção pecuniária num mero custo da actividade económica poluente, ou seja, surge a possibilidade de o montante das coimas não constituir elemento dissuasor suficiente.
           
IV. Concluindo-se pela legitimidade, e necessidade, da intervenção penal no domínio do ambiente, a sua aplicação, integrada num modelo exclusivista, acarreta as já referidas desvantagens, motivo pelo qual o Prof. Vasco Pereira da Silva defende uma combinação equilibrada entre sanções penais e sanções de natureza administrativa: criminalização das condutas mais lesivas do ambiente, “já que a   defesa do ambiente é parte integrante dos valores fundamentais das sociedades em que vivemos e corresponde a exigências de realização da dignidade da pessoa humana”, com a reserva de que tal não conduza a uma banalização do Direito Penal, pois o modo normal de reacção contra delitos ambientais deve ser o das sanções administrativas ou contra-ordenações. A Prof. Fernanda Palma acrescenta que o Direito de Mera Ordenação Social “pelos meios sancionatórios que oferece (sobretudo ao nível das sanções acessórias), e por não ser seu critério predominante de fim e medida da sanção a culpa, mas antes a reparação do dano e a desmotivação do infractor através do prejuízo pecuniário causado pela sanção, este ramo do Direito oferece mecanismos ideais relativamente a condutas anti-ambientais mão imediatamente anti-humanas ou só remotamente perigosas para os bens jurídicos pessoais ou sociais”, devendo reservar-se a tutela penal para situações de “substancialidade do dano, ou, pelo menos, perigo concreto para o bem ambiente”.

            VI. Seguindo esta perspectiva de combinação entre as vias sancionatórias, o Prof. refere que se privilegiou a via administrativa, com a consequente conformação de um sistema preferencial. Tal resultaria da lógica e espírito do sistema, globalmente considerado, dado o número predominante de delitos ambientais punidos através de contra-ordenação, e a quantidade limitada de crimes ambientais. Note-se que, em casos, o sistema parece apontar no sentido de favorecer a tutela penal do ilícito, de que é exemplo o art. 47º/2 da Lei de Bases do Ambiente, segundo o qual “no caso de a conduta constituir, simultaneamente, crime e contra-ordenação, será o infractor sempre punido a título de crime, sem prejuízo das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação”.

VII. O ordenamento jurídico-penal português consagra crimes de carácter ambiental, no Capítulo III do Código Penal, “Dos crimes de perigo comum”, do Título IV, “Dos crimes contra a vida em sociedade”, artigos 272º e seguintes. Em especial:
A)   Danos contra a Natureza (278º CP)
B)   Poluição (279º CP)
C)   Poluição com perigo comum (280º CP)

Em termos de estruturação típica da norma incriminadora, a Prof. Fernanda Palma apresenta um conjunto de possibilidades, todas elas consideradas imperfeitas pela Prof. : crimes de dever, de perigo abstracto, de perigo concreto, de dano.
Os crimes de dever são criticáveis por se converterem em crimes de desobediência, afectando a previsibilidade do Direito Penal e serem inadequados à censura da culpa do facto.
Os crimes de dano pressupõem uma intervenção tardia do Direito Penal se o dano corresponder já a uma lesão efectiva do ambiente e suscitam dificuldades de imputação objectiva em casos de causalidade cumulativa.
Os de perigo abstracto são de difícil enquadramento num Direito Penal de culpa. “Sendo o perigo mero motivo da incriminação, e não constando do tipo legal do crime, a conduta proibida não tem de revelar a concreta falta de motivação pela norma e decorrente culpabilidade do seu autor”.
Nos de perigo concreto, persiste a dificuldade em provar a causalidade relativamente ao perigo como evento.
É de realçar, neste ponto, o modelo combinatório apresentado pelo Prof. Figueiredo Dias: segundo o Prof. os crimes contra o ambiente deverão ser, em simultâneo, crimes de dever (de desobediência) e de resultado (eventualmente danoso), devendo basear-se numa conduta que actua lesivamente sobre um componente ambiental, mas que só é penalizada na medida em que um regulamento ou uma ordem emanados pela Administração sejam infringidos.

VIII. O Prof. Vasco Pereira da Silva afirma que uma possível acessoriedade administrativa do Direito Penal do Ambiente (manifestada, por exemplo, na possibilidade de se verificar uma delimitação administrativa do dano, deixando em aberto a definição do conteúdo do bem jurídico ambiente e do fundamento da sua tutela penal) não deverá significar “a substituição de critérios individualizados de culpa, ou de imputação subjectiva da conduta criminosa a um dado indivíduo, por critério meramente objectivos de verificação de simples desobediência às disposições administrativas, devendo antes dar-se a conjugação de ambas as dimensões para que se esteja perante um crime ecológico”.

            IX. O ordenamento jurídico português optou por esta via alternativa, baseada na conjugação da tutela penal com a tutela contra-ordenacional do ambiente, de uma forma que permite integrar as vantagens, e contornar as desvantagens, dos modelos exclusivistas. Assim, temos as vantagens associadas à via administrativa: a celeridade e eficácia da reacção punitiva, a não banalização do Direito Penal, a imputabilidade de pessoas colectivas. Mas também as garantias da via penal, através do direito de audiência e defesa (50º DL nº 433/82, 27 de Outubro), acompanhamento por advogado ou defensor (53º DL  nº 433/82) recurso das decisões para os tribunais (55º DL nº433/87) e sanções acessórias que apoiam a eficácia do delito contra-ordenacional (21º e seguintes DL nº 433/82).

Bibliografia:

.“Verde Cor de Direito”, Vasco Pereira da Silva

.”Direito Penal do Ambiente – Uma Primeira Abordagem”, Fernanda Palma

.”Sobre o Papel do Direito Penal na Protecção do Ambiente”, Jorge Figueiredo Dias

            .”Vale a Pena o Direito Penal do Ambiente?”, Paulo Sousa Mendes


João Nuno Alves Monteiro Gonçalves Casquinho, nº 18197, subturma 5
























           





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