quinta-feira, 15 de maio de 2014

Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Tutela Ambiental

I.                   Considerações prévias

A Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (adiante, CEDH) nasce em 1950, em Roma, inspirada na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do rescaldo da II Guerra Mundial. No sentido de criar um sistema de protecção aos direitos do homem e de combater as atrocidades que se tinham vivido em ambiente de guerra, este tratado internacional vem elencar um catálogo de direitos civis e políticos, os chamados direitos de primeira geração. O grande passo foi, sem dúvida alguma, a introdução pelo protocolo nº 11 que atribui ao indivíduo a qualidade de sujeito internacional e lhe reconhece legitimidade activa, uma vez vítima de violação do direito e de acordo com as condições de admissibilidade de queixa dos arts. 34.º e 35.º da CEDH. O verdadeiro ratio da Convenção de Roma estava longe de ser a preocupação com a conservação do meio ambiente, uma vez inserida neste contexto histórico. A tutela ambiental não era, nem de longe nem de perto, um dos pilares a incluir no texto originário.
Embora se tenha aperfeiçoado a Convenção com vários protocolos normativos e algumas propostas tivessem sido no sentido de efectivar o direito ao ambiente na Convenção 1, a verdade é que nenhuma passou só de boas intenções. A Doutrina tem justificado esta omissão devido à falta de definição transversal do bem jurídico “ambiente”. 2 Ainda que, como assinala Carla Amado Gomes, “a falta de vontade política relativamente à inserção de direitos a prestações”3 seja, talvez, outro grande motivo. 4
Apesar de, efectivamente, não estar expresso na Convenção, o Tribunal de Estrasburgo tem reconhecido algumas preocupações no sentido de preservar o ambiente, sendo o tema objecto da sua apreciação, com mais frequência. 5

II.                Evolução interpretativa na Jurisprudência

Como consequência do atrás referido, o Tribunal Europeu dos Direito do Homem, (adiante TEDH) tem introduzido um conjunto de princípios jurídico-ambientais. O Tribunal tem, para isso, realizado uma interpretação evolutiva, em consonância com as crescentes preocupações ambientais que vão surgindo na actualidade e no sentido de assegurar o efeito útil da Convenção. Decorrente da necessidade de ter de considerar problemas actuais relacionados com o ambiente, nomeadamente os níveis de ruído emitidos por aeroportos ou a poluição industrial, o TDDH interpreta extensivamente os direitos consagrados na Convenção de forma a poder abarcar aqueles “direitos humanos ambientais” 6. Assim, o direito ao ambiente tem brotado, indirectamente, de direitos como o direito à vida (art. 2.º CEDH), o direito ao respeito pela vida privada (art. 8.º CEDH) ou o direito à protecção da propriedade (art. 1.º, protocolo nº1).
Interessantemente, a jurisprudência do TEDH tem recorrido também à doutrina das obrigações positivas, contrariando a tendência da Convenção. Quer isto dizer que, do que decorre por exemplo dos arts. 2.º e 8.º da CEDH são obrigações negativas para os Estados – que se consubstanciam num dever de abstenção na interferência do direito consagrado. Contudo, o Tribunal tem entendido que, daí também decorre que os Estados têm obrigação de adopção de legislação tendente a uma tutela efectiva dos direitos ambientais, fornecimento de informações quanto aos riscos à actividade com impacto ambiental, etc.7
O TEDH tem seguido duas vias face à construção de uma protecção indirecta do ambiente: “a montante, a protecção do ambiente decorrerá reflexamente do reconhecimento de que a violação de um dos direitos convencionalmente consagrados foi determinada por um ataque ambiental e, portanto, o atendimento da pretensão individual equivalerá à concessão da tutela ambiental; a jusante, a protecção do ambiente servirá de fundamente para a legítima restrição pelas autoridades nacionais dos preditos direitos e, por conseguinte, o não provimento do pedido do requerente corresponderá à concessão de tutela ambiental.” 8
Exemplo do que daqui se pretende demonstrar é o Acórdão Chapman c. Reino Unido, de 18 de Janeiro de 2001, caso em que os requerentes, pretendendo pôr fim ao estilo de vida nómada, adquirem um prédio rústico para nele estacionar a caravana. Contudo, por aplicação das normas do direito do urbanismo domésticas, os requerentes são impedidos de ali se instalarem. Ponderado o conflito de interesses entre o direito à protecção da paisagem rural, enquanto refracção do direito do ambiente, e o direito a ter um estilo de vida tradicional, enquanto manifestação do direito ao respeito pela vida privada e familiar, de acordo com a margem de apreciação dos Estados, o Tribunal considerou que a protecção do ambiente é um fim legítimo a prosseguir pelos poderes públicos.

1.      O direito à vida: art. 2.º CEDH

A violação deste direito é muitas vezes, no entendimento do TEDH, relacionada com questões ambientais, uma vez que da protecção do ambiente depende a existência humana. Mais uma vez, apelando à doutrina das obrigações positivas, entende-se que a norma não vincula só os Estados contratantes à não prática de acções que prejudiquem o direito à vida mas, também “ a obrigação positiva de tomar as medidas adequadas para salvaguardas as vidas dos indivíduos sob a sua jurisdição”9. Esta obrigação positiva dos Estados cria o dever dos Estados criarem um sistema legal e administrativo que assegure, com eficácia, a salvaguarda do direito. Os Estados devem, por isso, adoptar uma regulamentação preventiva, como seja o licenciamento, a segurança, a supervisão da actividade com impacto ambiental. Por outro lado, o Estado, deve também, criar um sistema judicial de resposta à violação do direito.
Os dois casos mais importantes, neste sentido, levado ao TEDH foram o caso LCB c. Reino Unido, de 9 de Junho de 1998 e o caso Oneryildiz c. Turquia, de 30 de Novembro de 2004. O primeiro caso diz respeito a uma criança que contraiu leucemia e alega que se deveu à exposição do seu pai, militante das Forças Armadas Britânicas, a radiação decorrente de experiências nucleares. A requerente diz ter havido violação do direito à vida do art.2.º CEDH, uma vez que as autoridades nacionais deveriam ter informado os possíveis perigos da exposição. O tribunal acaba por decidir que a requerente não demonstra haver nexo de causalidade e que as autoridades nacionais, à altura do acontecimento, não tinham informação suficiente e, por isso, não estariam obrigadas a nenhum tipo de diligência extra. Ainda que a requerente não tenha conseguido que o Tribunal lhe desse razão, a verdade é que o próprio abriu um precedente quanto à obrigação positiva decorrente do art. 2.º, relativamente ao dever de informação no caso de perigo ambiental.
O segundo Acórdão relata o caso de uma explosão de metano ocorrida num depósito municipal de resíduos urbanos sitos nos arredores de Istambul, que, na sequência de um deslizamento de terras, havia tirado a vida a 39 pessoas que viviam em habitações ilegais construídas nos arredores. Foi demonstrado que existia um relatório pericial de 2 anos antes da tragédia a prever isso mesmo e que, ainda assim, as autoridades municipais nada fizeram. Neste caso, o Tribunal constatou que as autoridades municipais não só não respeitaram a obrigação positiva decorrente do art. 2.º CEDH de promover as medidas necessárias para prevenir estes acontecimentos, como não respeitaram a regulamentação ambiental em vigor e não procedeu a nenhuma atitude para combater a construção de habitações ilegais. O tribunal considerou, aqui, haver violação do art. 2.º CEDH.

2.      O direito ao respeito pela vida privada e familiar: art. 8.º CEDH

A tutela ambiental tem sido construída pelo TEDH muito através da interpretação evolutiva do art. 8.º CEDH.
O Tribunal tem, então, considerado como violação graves do ambiente os níveis de ruído emanados dos aeroportos, odores de tratamentos de resíduos, ou emissões industriais que podem afectar o bem-estar das pessoas e afectar a vida privada e familiar. Para a aplicabilidade do art. 8.º CEDH a estes casos, são necessários alguns requisitos: i) interferência na esfera privada do requerente; ii) nível mínimo de nocividade 10 – intensidade e duração do incómodo e consequências directas. Admitida a aplicação do artigo, o Tribunal analisa se houve ou não a ingerência do poder público para determinar se há violação das tais obrigações positivas que o Tribunal entende decorrer dos próprios artigos da Convenção. Concluindo o Tribunal pela ingerência, resta analisar se cabe na justificação apresentada pelo art. 8.º/2 CEDH.
No Acórdão Buckley c. Reino Unido, de 25 de Setembro de 1996 o Tribunal faz prevalecer o interesse colectivo de protecção do ambiente – a qualidade da paisagem – e o direito individual de uma minoria ter um estilo de vida tradicional. O caso diz respeito à acção interposta por alguns membros de etnia cigana que pretendiam abandonar a vida nómada e adquiriram um terreno para lá instalarem a sua caravana e que foi negado pelas autoridades municipais com fundamento na protecção da paisagem rural. O Tribunal considerou que os meios usados pelas autoridades para prosseguir o fim que é legítimo foram proporcionais e que, por isso, não haveria violação do art. 8.º CEDH. O Tribunal, mediante o não atendimento das pretensões dos requerentes, fundamenta com a protecção do ambiente para legitimar restrições do direito à vida privada e familiar.

3.      O direito à protecção da propriedade: art. 1.º do protocolo nº 1.

Este direito também poderá justificar restrições face ao direito do ambiente, desde que as interferências se encontrem previstas na lei e sejam proporcionais ao fim prosseguido. Casos como o Acórdão Fredin c. Suécia, de 18 de Fevereiro de 1991, relativo à revogação de uma licença de exploração de uma pedreira, o Tribunal entendeu que, ainda que se pudesse discutir que se estava a interferir com o gozo dos bens dos proprietários, a interferência estava em conformidade com a lei e prosseguia o interesse geral de protecção ao ambiente. Outro caso mais recente é o Acórdão Saliba c. Malta, de 8 de Novembro de 2005, no qual o Tribunal conclui da mesma forma.

III.             Apontamentos finais

Ainda que pareça que se tenha encontrado uma solução, a verdade é que a protecção do ambiente, no âmbito da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, só é discutida aquando da violação de direitos individuais. É indiscutível que a evolução interpretativa tenha desempenhado o papel fundamental de fixar alguns postulados ambientais em sede de Direito Europeu e que, sob a auctoritas do TEDH, se pode proceder à condenação dos Estados, se violados. Mas também é verdade que, face a essa condenação, os Estados poderão ter um sistema de recurso de revisão de actos jurisdicionais contrários à Convenção. Não se chegou, esperemos que ainda, a uma solução uniformizadora na intervenção do TEDH para a defesa da Convenção.

Não obstante estas e outras insuficiências, a jurisprudência “verde” do TEDH tem tido o mérito de “por sobre a mesa da doutrina internacional, com intensidade, a questão da defesa jurídica do ambiente”. 11

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1.       Proposta apresentada, em 1973, pelo Ministro do Interior da República Federal da Alemanha, que pretendia a adopção pela Convenção do direito à saúde e ao ambiente no sentido em que propunha instaurar um procedimento de reparação perante danos causados ao ambiente pelos particulares.

2.       Cfr. David San Martín Segura, in “La ecologización de los derechos fundamentales en el marco del Convenio Europeo de los Derechos Humanos”, excertos electrónicos.

3.       Escrever verde por linhas tortas: o direito ao ambiente na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in: http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/CarlaAGEscrever.pdf

4.       Importante referir que, apesar desta omissão na CEDH, outras tantas proclamações regionais de direitos fundamentais, como é ex. a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vieram contemplar várias referências ao direito do ambiente. Inclusive o art. 2.º do Tratado da União Europeia, na redacção no Tratado de Lisboa, tem como preocupação o melhoramento da qualidade do ambiente.

5.       Cfr. Acórdão Fredin c. Suécia, de 18 de Feveriro de 1991 e Acórdão Hacisalihoglu c. Turquia, de 2 de Junho de 2009.

6.       Cfr. Acórdão Hatoon e Outros c. Reino Unido, de 7 de Agosto de 2003

7.       Cfr., por ex., Acórdão imediatamente anterior.

8.       Cfr. Susana Almeida, in “Direito do Urbanismo e do Ambiente: estudos compilados.”, Quid Iuris, 2010.

9.       Cfr., por ex., Acórdão LCB c. Reino Unido, de 9 de Junho de 1998

10.    Cfr. Acórdão Fadayeva c. Rússia, de 9 de Junho de 2005.

11.    Cfr. David San Martín Segura, in “La ecologización de los derechos fundamentales en el marco del Convenio Europeo de los Derechos Humanos”, excertos electrónicos. 

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