domingo, 18 de maio de 2014

Dualidade de Jurisdições em matéria Ambiental

1.      Introdução


No ordenamento jurídico português, os tribunais administrativos e fiscais e os tribunais judiciais (ou comuns) são, por decorrência constitucional, duas jurisdições distintas.

Até à revisão constitucional de 1989 a nossa Lei Fundamental apenas de limitava a estabelecer a existência de tribunais administrativos e a garantir o recurso contencioso de anulação contra actos administrativos ilegais. A consagração presente na CRP oprimia a jurisdição administrativa.

Com a revisão Constitucional de ’89 a jurisdição administrativa passou a ser obrigatória (porque deixou de estar nas mãos do legislador ordinário a possibilidade da sua existência) e plena. De acordo com o artigo 212.º n.º 3 da CRP é da competência da jurisdição administrativa todo e qualquer litígio que emerja das relações jurídico-administrativas. Cabe assim aos tribunais comuns a competência residual, ou seja, tudo o que não couber em qualquer outra jurisdição será da competência dos tribunais judiciais.


2.      Jurisdição Administrativa vs Jurisdição comum em matéria ambiental[1]


Para esta análise ir-nos-emos basear na enunciação de CARLA AMADO GOMES (in Introdução ao Direito do Ambiente, 2ª Edição, 2014) e de acordo com a sua ordem será dada a nossa opinião relativamente ao tipo de jurisdição onde deve ser intentada acção.

Em primeiro lugar a autora chega à conclusão que, da conjugação entre as alíneas b) e l) do artigo 4º do ETAF, existem situações que são da competência da jurisdição administrativa as seguintes situações:

a)      Situações de dúvida relativamente à validade de uma autorização. Esta matéria resulta directamente do texto da alínea b) do artigo 4º ETAF, na sua primeira parte.

b)      Situações de violação de normas de protecção do interesse ambiental por entidades públicas responsáveis pela ofensa (alínea l) artigo 4º ETAF).

c)      Quando a violação de normas de protecção do interesse ambiental se consubstancie numa omissão de fiscalização de instalações ou actividades autorizadas, a acção com o fim de obrigar a administração a repor a legalidade é também intentada nos tribunais administrativos.

Somos, claramente, “obrigados” a concordar com a autora nas situações descritas nos pontos a) e b), já quanto à situação descrita no ponto c) tendemos a concordar, embora com algumas reservas. Não nos parece completamente claro que se possa enquadrar as situações omissivas no âmbito do conceito de “violação”, porque parece retirar-se do texto que a intenção do legislador seria apenas as situações activas praticadas pela administração. Ainda assim perece-nos que a solução proposta seja a melhor, dentro do quadro constitucional e legal (artigo 1º nº 1 ETAF), visto que, estaremos também nestas situações perante relações jurídico-administrativas, ainda que nos possa levantar algumas dúvidas o meio utilizado.

De seguida CARLA AMADO GOMES vem enunciar algumas situações em que existem dúvidas relativamente a qual a jurisdição competente, as quais passamos a enunciar:

a)      Nos casos de ofensas a normas em matéria ambiental traduzidas na exploração de uma actividade, por parte de um privado, sem a autorização necessária. Nesta situação a autora vem dizer que, visto que não existe qualquer relação jurídico administrativa, porque falta a autorização que criaria essa relação, nem nenhuma actuação ou omissão do dever de agir, serão os litígios emanados destas situações da competência dos tribunais comuns. De acordo com AMADO GOMES só seria matéria da competência da jurisdição administrativa, nos casos em que o autor consiga demonstrar que alertou as autoridades e estas nada fizeram, propondo a aplicação analógica do artigo 37º nº 3 do CPTA, a estas situações. Já MÁRIO AROSO DE ALMEIDA vem defender que nos casos em que o particular não tem autorização existe uma violação do dever de agir por parte da administração (estaríamos assim numa situação que em muito se assemelha à referida infra na alínea c)).

b)       Casos de ofensa às normas jurídicas em matéria ambiental traduzidas na exploração de uma actividade, por parte de um particular, com a necessária autorização mas indo além dos limites e termos impostos por esta. Nestas situações a autora vem dizer que só será da competência dos tribunais administrativos caso o autor venha também arguir a ilegalidade da autorização concedida ou se procedeu da forma explicitada no ponto anterior relativamente ao alerta dado administração e à inércia desta. Se nada do mencionado se verificar é então da competência dos tribunais judiciais. A nosso ver MÁRIO AROSO DE ALMEIDA parece seguir a mesma posição que defendeu relativamente às situações mencionadas no ponto a).

c)      Nas situações em que a ofensa às normas jusambientais tenha como consequência uma alteração adversa comensurável de um estado-dever de um componente ambiental, ofensa essa perpetrada por um privado e denunciada pelo proprietário do bem que se sente afectado na sua esfera individual (patrimonial ou extrapatrimonial). Nestas situações diz a autora que existe uma sobreposição da vertente patrimonial sobre a vertente ecológica, sendo por isso competência dos tribunais comuns.

d)     Fora destas situações a autora salienta que é da competência dos tribunais comuns os litígios que tenham por fim a aplicação de sanções contra-ordenacionais (matéria penal) e as relativas a direitos de personalidade, visto que, visam a defesa de interesses individuais.

Analisando as diversas situações podemos dizer que relativamente às situações enunciadas em a), teremos de concordar com CARLA AMADO GOMES e discordar de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA. Embora se entenda as razões que levam o autor a defender a sua tese, tendo em conta que como o próprio refere que a “generalidade da doutrina” reconhece que “o direito administrativo é o ramo que, por natureza, está melhor posicionado para introduzir, na ordem jurídica substantiva, as regras necessárias para conciliar o desenvolvimento económico com o respeito pelo ambiente”, logo entende-se que este autor queira dar enorme primazia à jurisdição administrativa quando se trata de matéria ambiental. Ainda assim perece-nos que não existe, nesta situação, qualquer violação do dever de agir por parte da administração, no que à autorização diz respeito, visto que o ónus de requerer a autorização era do particular.

No que diz respeito aos casos referidos na alínea b) já tendemos a concordar com AROSO DE ALMEIDA, visto que nestas situações estará em causa a violação desse dever de agir da administração, e portanto existe aqui uma omissão e deve a acção ser intentada junto dos tribunais administrativos.

Finalmente no que diz respeito às duas últimas hipóteses concordamos, obviamente, com AMADO GOMES, pelas justificações que a autora explicita. Relativamente à referida na alínea c) porque tendo em conta que estão em causa bens de natureza privada e por isso da competência da jurisdição comum.


3.      Conclusão


Como foi visto, por tudo o explanado anteriormente, existe uma dualidade jurisdicional em matéria ambiental. Da nossa parte só existiria uma solução que poderia pôr fim a estas situações de incerteza, que podem muitas vezes pôr em causa a segurança e certeza jurídicas dos particulares, que seria seguir a posição defendida por VASCO PEREIRA DA SILVA. O autor defende que “tendo em conta a horizontalidade do Direito do Ambiente, que releva de todos os sectores da ordem jurídica assim como todas as disciplinas jurídicas, mais adequada do que a eventual constituição de uma jurisdição ambiental seria a criação de tribunais de competência especializada” (em razão da matéria) “bem como de meios processuais específicos de tutela do ambiente em cada uma das jurisdições existentes.”.
Seria do nosso ponto de vista a solução adequada, visto que, o direito do ambiente é uma área jurídica complexa e com uma legiferação constante, em certa medida por exigências internacionais. Parece-nos que deve o nosso legislador dar mais atenção à situação concreta da jurisdição das matérias ambientais, sendo que é uma parte com grande importância para a defesa da ecologia e práticas ambientalmente amigas. Como podemos defender efectivamente o ambiente se não temos tribunais de competência especializada para dirimir litígios em matéria ambiental?



Bibliografia

GOMES, CARLA AMADO - Introdução ao Direito do Ambiente, 2ª Edição, AAFDL, 2014

ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE - Tutela Jurisdicional em matéria ambiental, in Estudos de Direito do Ambiente, Publicações Universidade Católica

SILVA, VASCO PEREIRA DA - Verde Cor de Direito - Lições de Direito do Ambiente, 2ª reimpressão, Almedina, 2004


              
       



[1] De salientar que tanto a autora como outros autores consultados fazem referência nesta matéria ao artigo 45º da Lei 11/87 e à sua posterior alteração pela Lei 13/2002, mas foi publicada recentemente a nova lei de bases do ambiente (Lei 19/2014) que não faz qualquer referência à matéria anteriormente versada pelo artigo 45º da Lei 11/87, sendo assim neste trabalho olharemos apenas para as leis em matéria processual, designadamente o ETAF. 

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