quinta-feira, 15 de maio de 2014

O Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil Ambiental: A "Multicausalidade"


Delimitação do Tema
   A responsabilidade civil tem sido utilizada no âmbito ambiental como um mecanismo de resposta às ofensas ao ambiente, no entanto a sua utilização nos moldes clássicos gera algumas dificuldades a nível da verificação dos pressupostos necessários que têm de estar preenchidos.
  Recordemos quais são os pressupostos que têm de estar verificados para que haja lugar à responsabilidade civil (subjectiva), segundo o art.483.º do Código Civil (doravante, CC):
  • Existência de um facto voluntário;
  • Ilicitude;
  • Culpa;
  • Dano;
  • Nexo de causalidade entre o facto e o dano.
  Será sobre o último pressuposto que nos vamos debruçar: Identificaremos as teorias mais comuns que procuram dar resposta à determinação do nexo de causalidade e analisaremos de que forma essas teorias solucionam o problema da chamada “multicausalidade”, isto é, quando se verifique um concurso de causas.
  Nesta esteira, verificaremos, também, o que estabeleceu o Decreto-Lei n.º 147/2008 de 29 de Julho acerca desta temática.

Dificuldades Encontradas e Soluções Apresentadas
   Em termos gerais, a aplicação da Responsabilidade Civil aos danos ambientais gera alguns problemas dogmáticos pelo facto do dano ambiental apresentar, por norma, características diferentes dos danos em direito civil. Mas estes problemas ganham especial importância quando procuramos estabelecer o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Factores como o “modo próprio de actuação dos poluentes, a influência conjugada de factores múltiplicos, as situações de «multicausalidade» e o prolongamento no espaço e no tempo (gerando “danos tardios” e “danos à distância) do processo poluente” (1), contribuem e evidenciam a dificuldade que é a determinação da causalidade no domínio ambiental.
   Importa esclarecer que isto é válido tanto para a Responsabilidade Subjectiva como para a Objectiva, pois, apesar de não ser necessário verificar-se todos os pressupostos nesta última, o requisito do nexo de causalidade tem sempre de estar verificado, sendo imprescindível.

   Na Doutrina têm surgido diversas teorias que procuram dar uma solução a esta questão, de modo a facilitar a imputação de um dano a um facto em concreto, das quais se destaca:

  •  Teoria da Conditio Sine Qua Non: considera causa de um evento toda e qualquer condição que tenha concorrido para a sua produção, de tal forma que, sem a sua verificação, o dano não teria ocorrido. É uma teoria puramente naturalística;

  • Teoria da Causalidade Adequada: exige, igualmente, que o facto praticado tenha sido causa do dano, mas, para ultrapassar o crivo naturalista, acrescenta-se um requisito jurídico: é necessário que seja um facto adequado a produzir tal efeito e que a sua verificação fosse previsível no momento da sua prática (para a sua análise, recorre-se ao juízo de “prognose póstuma”);
  • Teoria do Escopo da Norma Violada: defende que para haver nexo de causalidade, basta averiguar se os danos que resultaram do facto correspondem à frustração das utilidades que a norma visa conferir. Entre nós é defendida por MENEZES LEITÃO.

   Antes de apresentar mais teorias, cabe tecer uma crítica a estas. As três teorias já expostas pecam pela sua forte dependência da conditio sine qua non. No domínio ambiental, é praticamente impossível demonstrar a causalidade natural entre o facto e o dano, por diversas razões que se podem prender com a pluralidade de agentes, ou pluralidade de actos de um só agente e que, em concreto, não se consegue associar que são “os actos X dos agentes Y” que causaram este dano. Conclui-se, então, que qualquer teoria que tenha na sua génese a necessidade de se verificar a causalidade natural, não parece ter grande utilidade na responsabilidade civil ambiental.   

   Seguem-se as seguintes teorias:
  • Teoria da Causalidade Estatística: tem por base um critério de probabilidade, isto é, haveria nexo de causalidade sempre que a prática de determinada actividade tivesse um elevado grau de probabilidade de causar o dano. O professor MENEZES LEITÃO, não nos parecendo que aceita a teoria, considera que esta pode ter fundamento legal através do estabelecimento de presunções legais (art. 351.º do CC). Já a professora ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA rejeita esta teoria, considerando que não tem base legal que a sustente e que, a considera-la, estaríamos a atribuir a responsabilidade “fundada em «suspeitas»” (2).
  • Teoria da Conexão do Risco: defendida por ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA que, sabiamente, vai procurar ao Direito Penal um critério válido de determinação da causalidade. Segundo esta teoria “o dano ambiental é imputável ao agente quando este concretamente cria ou aumenta um risco não permitido (no caso de responsabilidade subjectiva) ou um risco previsto na norma legal (no caso da responsabilidade objectiva) e o resultado lesivo é materialização ou concretização desse risco” (3).

   No âmbito do Direito Comparado, os países anglo-saxónicos consagram:
  • Pollution-Share Liability: responsabilidade segundo o nível de emissões poluentes, não havendo necessidade de demonstrar qual foi a emissão que causou o dano;
  • Market-Share Liability: responsabilidade segundo a quota de mercado, ou seja, a responsabilidade é distribuída segundo a quota que cada empresa tem no mercado.

   Estas duas últimas teorias são de considerar, de iure condendo, pois são uma boa solução para os problemas de concurso de causas, que serão analisados infra.

    Após a explanação das diferentes teorias apresentadas pela Doutrina, coloca-se a questão de saber qual foi a teoria perfilhada pelo Decreto-Lei n.º 147/2008, Decreto que regula a responsabilidade ambiental. O seu art. 5.º, com a epígrafe “nexo de causalidade”, não vem adoptar expressamente uma destas teorias (apesar da professora CARLA AMADO GOMES entender que aqui está consagrada a teoria da causalidade adequada) (4). Limita-se a consagrar uma regra geral quanto à prova e a estabelecer critérios de aferição de causalidade: a verosimilhança e probabilidade do facto danoso ser apto a produzir a lesão verificada, devendo ainda que considerar caso concreto, o grau de risco e de perigo, a possibilidade de prova científica e o cumprimento, ou não, de deveres de protecção (recurso aos MTD’s, por exemplo). Note-se que vem estabelecer critérios que já eram adoptados por CUNHAL SENDIM anos antes da entrada em vigor deste Decreto-Lei (5).

    O que me parece que o legislador optou por fazer, ciente de todas as dificuldades quanto ao estabelecimento do nexo de causalidade, foi atenuar a exigência de prova, tornando-a mais leve, pois à luz deste artigo, basta que o Juiz fique convicto da probabilidade de se verificar o nexo de causalidade, deixando de se exigir uma certeza. Mesmo assim, CARLA AMADO GOMES e MENEZES LEITÃO vêm criticar o facto de o art.5.º não estabelecer uma presunção a favor do denunciante, contudo, estão em acordo quanto à possibilidade de se retirar implicitamente a presunção: MENEZES LEITÃO com base na redacção ampla do preceito, CARLA AMADO GOMES com base no princípio da prevenção.
   É de frisar que, para o professor VASCO PEREIRA DA SILVA, a solução ideal também passaria pelo estabelecimento de uma presunção a favor do denunciante.

A “Multicausalidade”
   Tal como referido supra, estamos perante um caso de multicausalidade quando existe um concurso de causas. A sua análise é de extrema importância porque constituem a regra dos fenómenos causais ambientais. A professora ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, com base na doutrina alemã, apresenta-nos três situações em que há concurso de causas, a saber: Causalidade Cumulativa, Causalidade Aditiva (também conhecida como potenciada ou sinergética), e Causalidade Alternativa.

   Comecemos pela Causalidade Cumulativa: ocorre quando diversas condutas conjugadas levam à produção de determinado dano, sendo certo que a sua verificação em separado, o não produziriam. A professora faz a ressalva que no nosso ordenamento jurídico, a designação “causalidade cumulativa” é, maioritariamente, utilizada para as situações em que as situações verificadas isoladamente, levariam também à produção do dano, ou seja, aquilo que designaremos como “Causalidade Aditiva” (como é uma questão terminológica, adoptaremos a terminologia apresentada pela professora).
   Quando já se provou que a conduta de vários agentes em conjunto provou determinado dano, a teoria da conditio sine qua non resolve de imediato o problema, imputando-se o facto a todos os agentes, pois as condutas dos agentes são conditio sine qua non uma das outras, pois é necessário a verificação de todas para o dano se produzir. Mas isto é o que está na base de todo o objectivo desta publicação: se o direito do ambiente fosse assim tão linear, não havia dificuldade nenhuma na aferição da causalidade. Na prática, esta certeza que aqui é evidenciada (da dependência recíproca dos actos dos agentes) praticamente nunca se verifica. A evolução da teoria da conditio sine qua non levou a que apenas os agentes que tivessem conhecimento da conduta dos outros agentes é que seriam responsabilizados: isto leva a conclusões que não são desejadas no Direito do Ambiente, porque, a assim ser, seriam poucos os casos em que os agentes seriam, efectivamente, responsabilizados. Qual é, então, a solução? A teoria da conexão do risco parece ser apta para a resolução do problema: conseguimos responsabilizar todos os agentes, pois a acção de cada um isolada, contribuiu para o aumento do risco da verificação do dano.

   Quanto à Causalidade Aditiva, esta verifica-se quando as acções isoladas de vários agentes, por si só, eram aptas à produção de determinado dano. Aqui não há grandes dificuldades, pois todas as teorias responderiam afirmativamente para a responsabilização de todos os agentes.

   Finalmente, temos a Causalidade Alternativa, que se verifica quando há vários agentes que podem ter causado um determinado dano, pois todos levaram a cabo actividades aptas para o fazer, mas não se sabe qual deles, em concreto, o produziu.
   O professor MENEZES LEITÃO entende que, de iure condito, não se pode imputar o dano a todos os intervenientes, seguindo a doutrina clássica, por considerar que se não se verifica um nexo de causalidade entre o dano e o facto, então não se pode responsabilizar. Já o professor MENEZES CORDEIRO, tendo em conta a posição clássica, entende que esta não se deve aplicar ao direito do ambiente e, neste caso, devemos responsabilizar todos os agentes (o que nos parece ser, claramente, uma manifestação do in dúbio pro ambiente). A professora ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, coerente com o seu pensamento, entende que também aqui a teoria da conexão do risco resolve o problema: visto que todos os agentes levaram a cabo acções potencialmente lesivas, todos aumentaram o risco da verificação do dano, logo deve funcionar aqui uma presunção de imputação quanto a todos os sujeitos que aumentaram o risco.
  Recorde-se que as teorias anglo-saxónicas já explicadas seriam ideias para a resolução do problema, contudo, não se encontra na nossa ordem jurídica fundamento para as aplicar.

  Mais uma vez, cabe perguntar qual foi a solução trazida pelo Decreto-Lei n.º 147/2008, e a resposta é: nenhuma! O art. 4.º apenas vem prever a solidariedade entre os agentes em caso de comparticipação (sem prejuízo de puder haver direito de regresso), ou seja, parte do pressuposto que a causalidade entre o dano e os factos já está aferida. Omissão esta que é de se criticar, devido à importância da questão em causa.
  O artigo estabelece ainda a presunção de que os agentes respondem em partes iguais (n.º2), solução que é, igualmente, de rejeitar, pois apesar da dificuldade de apurar a medida em que cada um contribui para a produção do dano, há mecanismos que poderiam ter sido trazidos para a ordem jurídica portuguesa que obstavam à criação desta “desigualdade” – por exemplo, o recurso às quotas de mercado. 

Conclusões
   Perante todo o exposto, podemos concluir que, apesar de serem evidentes as dificuldades de aplicação da responsabilidade civil nos seus moldes clássicos, este é o mecanismo mais eficaz para tutelar as lesões e tem-se vindo a densificar com a aprovação de regimes específicos no âmbito ambiental.
   Conclui-se, também, que as teorias de determinação do nexo de causalidade que tenham base naturalística são insusceptíveis de aplicação ao direito do ambiente, pelas características que lhe são atinentes. Na minha opinião, é tentadora a solução da teoria da conexão do risco, pois é a mais eficaz para que haja sempre lugar à imputação do dano ao facto, contudo, questiono-me se não será uma teoria um pouco excessiva. Devemos ter em conta que, qualquer actividade, por muito pouco poluidora que seja, acaba sempre por aumentar um risco, que até é previsível – haveria uma imputação por este aumento, mas continuaríamos na dúvida se aquela actividade é a real causadora do dano. Por tudo isto, compreendo o “não comprometimento” do legislador em não adoptar expressamente uma teoria no art.5.º e optar antes pela verificação de critérios específicos e pela redução do grau de exigência de prova (acautelando, igualmente, que em certos não haja qualquer imputação) – é de se aceitar as críticas ao facto de não estar estabelecido uma presunção neste artigo, no entanto, visto que é atenuado o grau de exigência de prova, bastando uma mera “probabilidade” de verificação do acto, não nos parece que seja uma omissão demasiado gravosa.
   Quanto à multicausalidade, verifica-se que o legislador perdeu uma óptima oportunidade de resolver o problema, pois poderia tê-lo feito no Decreto-Lei n.º 147/2008. Na falta de melhor solução, resta-nos apoiarmo-nos nas teorias expostas e nos critérios do art. 5.º.   


Carlos Sarmento
N.º 21017 

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(1) Cfr., ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, A Prova do Nexo de Causalidade na Lei da Responsabilidade Ambiental, página 173;
(2) Cfr., ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Causalidade e Imputação na Responsabilidade Civil Ambiental, página 126;
(3) Cfr., supra, página 127;
(4) Cfr., CARLA AMADO GOMES, A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, página 33;
(5) Cfr., CUNHAL SENDIM, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos.
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Bibliografia Consultada:

  • CUNHAL SENDIM, José de Sousa, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos, Coimbra, Almedina, 2002;
  •  GOMES, Carla Amado, Introdução ao Direito do Ambiente, AAFDL, 2ª Edição, 2014;
  • GOMES, Carla Amado, A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, e-book, 2008;
  •  MENEZES LEITÃO, Luís de, A Responsabilidade Civil por Danos Causados ao Ambiente, in Actas do Colóquio – A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, e-book, ICJP, 2009;
  • MENEZES LEITÃO, Luís de, Direito das Obrigações – Volume I, Coimbra, Almedina, 5ª Edição, 2006;
  • OLIVEIRA, Ana Perestrelo de, Causalidade e Imputação na Responsabilidade Civil Ambiental, Coimbra, Almedina, 2007;
  • OLIVEIRA, Ana Perestrelo de, A Prova do Nexo de Causalidade na Lei da Responsabilidade Ambiental, in Actas do Colóquio – A Responsabilidade Civil por Dano Ambiental, e-book, ICJP, 2009;
  • SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito: Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002.

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