Os contratos de adaptação
ambiental: uma breve reflexão
As normas legais imperativas, no domínio do
direito ambiental, têm como principal objectivo impor limites às actividades que
se revelem potencialmente lesivas do meio ambiente, de modo a proteger este da
maneira mais eficaz possível. Contudo, atente-se ao final desta última frase: ‘da maneira mais eficaz possível’. Será
que a mera imposição unilateral de normas constitui o modo mais eficaz de
evitar e controlar condutas susceptíveis de lesar o ambiente? Pois bem, a
prática parece revelar que não. E foi precisamente devido a esta aparente
diminuta eficácia na imposição de comandos legais que a Administração Pública
procurou outros meios de a alcançar, surgindo assim os designados contratos
de adaptação ambiental.
Trata-se de um modo de concertação entre a
Administração Pública e as empresas potencialmente poluidoras, nos termos do
qual se procede a uma derrogação temporária dos comandos imperativos. Estão
actualmente previstos no artigo 78º do
DL 236/98 de 1 de Agosto, que veio revogar o anterior DL 74/90, ambos
versando sobre a qualidade ambiental da água. Pode-se dizer que, com este novo
DL 236/98, se deu a primeira previsão expressa da figura, com ‘pretensões de regulação global’[1].
Tal como resulta dos nºs 1 e 4 do artigo 78º só poderão beneficiar deste tipo
de contratos as empresas que demonstrem já se encontrar em funcionamento antes
da data de entrada em vigor do diploma. Deste modo, procura-se atender às
legítimas expectativas das empresas na estabilidade do ordenamento jurídico,
bem como atenuar o impacto financeiro de novas exigências ambientais na
sustentabilidade das mesmas. Entende-se ainda que, de acordo com a liberdade de
associação e por forma a garantir a igualdade entre as várias empresas do mesmo
sector, a adesão deve ser garantida não apenas às indústrias representadas
pelas associações no momento da negociação e celebração dos contratos, mas
também àquelas que não se encontrem representadas, por opção própria, nesse
momento.
Há que distinguir dois momentos essenciais: o
primeiro, da negociação e celebração do contrato-programa ou contrato-tipo, que
ocorre entre as associações representativas dos sectores de actividade
económica, de um lado, e o Governo (representado pelo Ministério do Ambiente,
conjuntamente com o ministério responsável pelo sector em causa), do outro,
momento em que ficam definitivamente estabelecidas as cláusulas contratuais; e
o segundo, da concreta adesão da empresa ao contrato-tipo pré-estabelecido. É,
assim, concedido um prazo e fixado um calendário a cumprir pelas empresas
aderentes para adaptação às normas ambientais já em vigor, os quais serão
tomados como referência para a fiscalização da actividade das empresas no que
toca ao cumprimento das suas obrigações ambientais, tal como prevê o nº 6 do
artigo 78º. As normas imperativas não serão, deste modo, aplicadas às empresas
aderentes até ao final desse mesmo prazo. Após este, a empresa já deverá estar
apta para cumprir os limites de emissões fixados por lei. Consegue-se assim,
nas palavras de Mark Kirkby[2],
em vez de um ‘cumprimento generalizado’,
o qual se demonstra como praticamente inalcançável, um ‘cumprimento possível’. Ou seja, atinge-se o fim de interesse
público protegido pela norma ambiental não na sua totalidade, mas pelo menos em
parte, o que acaba por revelar, na maior parte dos casos, uma eficácia significativamente
maior em comparação com a mera sujeição aos comandos legais. Além da vantagem
da eficácia, este meio assegura também a prossecução de outros valores,
designadamente o da sustentabilidade económica das empresas, na medida em que a
sujeição directa e imediata aos comandos legais costuma acarretar elevados
custos às mesmas que, deste modo, são atenuados. Visto isto pareceria, à
partida, tratar-se de um meio alternativo bastante benéfico e positivo. Mas há
questões preponderantes que se levantam, e que põem em causa a legitimidade e
legalidade desta alternativa contratual, sobretudo a do choque com o princípio
da legalidade.
Este princípio estruturante do Estado de Direito
democrático, constitucionalmente consagrado no artigo 266º, nº 2 da nossa
Constituição, subordina a Administração à lei. Ora, o que esta figura parece
fazer é isentar, mediante contrato, as empresas que a ele adiram do cumprimento
de normas ambientais em vigor durante o prazo de adaptação acordado e fixado, o
que viola claramente o princípio em causa. Além do princípio da legalidade da Administração, é violado o princípio da tipicidade das formas de lei,
consagrado no artigo 112º, nº 5 da CRP, pois habilita-se o contrato celebrado
pela Administração a derrogar os efeitos de normas jurídicas de natureza
legislativa. Têm sido avançados argumentos no sentido de uma
‘desculpabilização’ destas questões, apoiados na afirmação de uma crise
generalizada do princípio da legalidade. Antes de mais a lei, geral e
abstracta, não teria capacidade de regular com detalhe as situações concretas
da vida – tal parece, porém, óbvio e um dado assente para qualquer das posições
que se adopte. Contudo, aspectos como a definição do que seja o ‘interesse público’ a prosseguir pelas
normas ambientais - que seria, à partida, apenas determinável em termos exactos
e concretos pela Administração, diante das circunstâncias específicas do caso –
e a exigência de eficácia que recai sobre a Administração – que conduziria à
necessidade de um alargamento da margem de livre decisão que lhe é conferida –
são entendidos pelos defensores da legalidade destes contratos como
justificadores da sua importância e necessidade.
Mark
Kirkby entende que esta figura contratual apenas poderá assumir um papel residual
no ordenamento jurídico português isto porque, das duas uma: ou a lei, de
facto, confere uma ampla autonomia decisória à Administração (designadamente por
a estatuição da norma ambiental comportar uma significativa margem de
discricionariedade), caso em que o contrato de adaptação poderá revelar-se
bastante útil; ou a lei é bastante completa, definindo com rigor os parâmetros
de actuação da Administração, situação na qual a celebração deste tipo de
contratos constituirá uma clara violação do princípio da legalidade e, como
tal, será inconstitucional. Vasco Pereira
da Silva[3]
assume um posicionamento bastante similar, defendendo uma interpretação
conforme à Constituição e admitindo este tipo de contratos, no limite, desde que os mesmos respeitem
três condições: não se traduzam numa ‘fraude
à Constituição ou à lei’ (no sentido de uma fuga à hierarquia dos actos
normativos); ‘não ponham em causa os
princípios fundamentais que regem a actuação administrativa’ e consigam
encontrar ‘cabimento na previsão
legislativa’.
Outro aspecto importante ao qual merece ser feita
referência é o da restrição que, deste modo, se verifica relativamente ao
direito fundamental ao ambiente – direito de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias (artigo 17º da CRP). Podemos afirmar que a aprovação de
normas de qualidade ambiental constitui uma definição e concretização
legislativa do conteúdo desse mesmo direito fundamental. O DL 236/98, ao permitir
que as emissões poluentes não cumpram níveis tão exigentes quanto aqueles
legalmente consagrados está a limitar o conteúdo do direito fundamental. Uma
tal restrição só será admissível se respeitado o princípio da proporcionalidade
(artigo 18º, nº 2 da Constituição). Embora, com efeito, haja uma justificação
para a restrição operada – a do desenvolvimento económico e social, tarefa
fundamental do Estado nos termos do artigo 9º, alínea d) da CRP – já será
duvidosa a sua efectiva necessidade, sobretudo se verificarmos que se trata de
uma restrição cujos contornos são extremamente imprecisos, sendo deixada à
Administração uma margem de discricionariedade tão ampla que lhe permite
estipular, em cada momento, os valores concretos que serão contratados.
Atentemos agora à tutela de particulares
terceiros aos contratos, com direitos e interesses legítimos no caso concreto
que possam vir a ser lesados por aqueles. Será que o procedimento de formação
deste tipo de contratos tem em conta o direito de participação procedimental
dos interessados na formação da decisão administrativa? O artigo 78º do DL 236/98
parece ignorar esta questão o que, a meu ver, não é a solução mais correcta e sensata,
pois trata-se de uma área particularmente sensível – estão em causa posições
jurídico-subjectivas de terceiros exteriores ao contrato, que podem assim ver
afectadas as suas esferas pessoais, de um momento para o outro, sem
possibilidade de reagir. Apesar deste aparente ‘ignorar’ do problema por parte
do regime, o CPA parece resolver genericamente a questão. O artigo 181º do CPA
manda aplicar à formação dos contratos administrativos as disposições relativas
ao procedimento administrativo, ou seja, aos actos administrativos, o que
significa que tudo o que diga respeito aos direitos de participação
procedimental dos interessados para tutela dos seus direitos nos actos
administrativos se aplica, com as necessárias adaptações, aos contratos
administrativos. Aplica-se, por conseguinte, o artigo 55º, nº 1 do CPA, que
consagra um mecanismo de notificação obrigatória aos interessados, que no caso
em apreço serão os particulares que sejam vizinhos ambientais de empresas que
adiram aos contratos e as associações de defesa do ambiente que representem os
interesses dos potenciais lesados.
Mas a questão gritante da tutela procedimental
prende-se com o seguinte: o artigo 78º prevê contratos-quadro e não contratos
individuais celebrados entre o Governo e as empresas em concreto. As partes na
celebração são a associação representativa do concreto sector económico e o
Governo, tal como dispõe o nº 1 do artigo. Ou seja, temos dois momentos: o
primeiro, da celebração do contrato-quadro – contrato de adaptação sectorial; e
o segundo, da adesão da empresa x ao referido contrato. Só aquando deste é que
o terceiro, vizinho ambiental da empresa aderente, poderá sentir-se lesado no
seu direito fundamental ao ambiente. E aqui já não terá possibilidade de
intervir, mediante o seu direito de participação procedimental, na formação da
decisão administrativa. Trata-se, pois, de uma ‘concepção meramente formalista-processual do procedimento’[4]
que impede, na prática, o particular afectado de agir em sua defesa na
eventualidade de uma ameaça a um direito seu.
Por último, e para finalizar esta breve reflexão
– que, como tal, não pretende ser exaustiva, mas apenas questionar alguns dos
aspectos mais problemáticos do regime destes contratos – refira-se a posição de
Carla Amado Gomes[5],
que encara a possibilidade de derrogação de normas ambientais como uma
autêntica ‘degradação do índice de
protecção ambiental’, verdadeiramente contrário aos princípios que norteiam
uma ‘coerente e eficaz protecção do
ambiente’ e constituindo uma ‘demissão
das responsabilidades públicas de protecção do ambiente’. Concordamos com a
autora, na medida em que, deste modo, em vez de se incentivar a prossecução e o
cumprimento dos níveis de protecção ambiental considerados ideais e consagrados
na lei, incentiva-se precisamente o oposto: a sua alteração, no sentido de uma
degradação ambiental. Outro aspecto que poderá estar a ser violado é o da
concorrência, em condições de igualdade, entre empresas, que o nº 2 do artigo
78º abarca ao estabelecer a necessidade da conformação dos contratos com as
regras comunitárias. Isto porque assim assiste-se a uma diferenciação entre as
empresas que aderem ao contrato-quadro, que suportarão menores custos e, desse
modo, conseguirão sustentar os seus níveis de produção e aquelas que resolvem
não aderir, investindo na sua modernização técnica de modo a cumprir as normas
legais imperativas, mas que assim poderão não obter níveis tão elevados de
rendimento. Aqueles que não cumprissem os standards gerais de protecção ambiental
seriam beneficiados em detrimento dos que os cumprissem, solução manifestamente
injusta.
Resta-nos concluir, enfatizando a complexidade do
tema que foi abordado e a diversidade de polémicas que suscita. Embora a
legalidade da figura seja, para muitos, questionável, sendo inegável que a
mesma toca uma série de aspectos sensíveis do ponto de vista jurídico, é também
de considerar que, em termos de eficácia, este tipo de contratos pode, em
certos casos, assegurar um maior cumprimento em comparação com a mera sujeição
a comandos legais. No entanto, e face ao valor em presença – o ambiente –
parece-me que, globalmente considerada, a figura dos contratos de adaptação
ambiental desincentiva o cumprimento dos níveis de protecção ambiental
estabelecidos, promovendo a sua alteração para níveis inferiores. Será justo
fazer a eficácia administrativa prevalecer sobre o equilíbrio ambiental?
Parece-me duvidoso...
Referências bibliográficas:
- AMADO GOMES, CARLA; ‘Introdução ao Direito do Ambiente’; AAFDL, 2012.
- KIRKBY, MARK; ‘Contratos de adaptação ambiental: a concertação entre Administração
Pública e particulares na aplicação de normas de polícia administrativas’;
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2001.
- MOREIRA, ISABEL; ‘Contratos de adaptação ambiental – algumas reflexões’; Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, 1999.
- PEREIRA DA SILVA, Vasco; ‘Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente’; Almedina,
2004.
- RODRIGUES SILVA, DUARTE; ‘Os contratos de adaptação ambiental’; Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, 2001.
Iida Ojanen Ferreira Alves, nº
20773
[1] KIRKBY, MARK; ‘Contratos de adaptação ambiental: a
concertação entre Administração Pública e particulares na aplicação de normas
de polícia administrativas’; Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, 2001.
[2] KIRKBY, MARK; ‘Contratos...’.
[3] PEREIRA DA SILVA,
Vasco; ‘Verde Cor de Direito – Lições de
Direito do Ambiente’; Almedina, 2004.
[5]
AMADO GOMES, CARLA; ‘Introdução ao
Direito do Ambiente’; AAFDL, 2012.
Visto.
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