sexta-feira, 16 de maio de 2014

Os contratos de adaptação ambiental: uma breve reflexão



Os contratos de adaptação ambiental: uma breve reflexão


As normas legais imperativas, no domínio do direito ambiental, têm como principal objectivo impor limites às actividades que se revelem potencialmente lesivas do meio ambiente, de modo a proteger este da maneira mais eficaz possível. Contudo, atente-se ao final desta última frase: ‘da maneira mais eficaz possível’. Será que a mera imposição unilateral de normas constitui o modo mais eficaz de evitar e controlar condutas susceptíveis de lesar o ambiente? Pois bem, a prática parece revelar que não. E foi precisamente devido a esta aparente diminuta eficácia na imposição de comandos legais que a Administração Pública procurou outros meios de a alcançar, surgindo assim os designados contratos de adaptação ambiental.

Trata-se de um modo de concertação entre a Administração Pública e as empresas potencialmente poluidoras, nos termos do qual se procede a uma derrogação temporária dos comandos imperativos. Estão actualmente previstos no artigo 78º do DL 236/98 de 1 de Agosto, que veio revogar o anterior DL 74/90, ambos versando sobre a qualidade ambiental da água. Pode-se dizer que, com este novo DL 236/98, se deu a primeira previsão expressa da figura, com ‘pretensões de regulação global[1]. Tal como resulta dos nºs 1 e 4 do artigo 78º só poderão beneficiar deste tipo de contratos as empresas que demonstrem já se encontrar em funcionamento antes da data de entrada em vigor do diploma. Deste modo, procura-se atender às legítimas expectativas das empresas na estabilidade do ordenamento jurídico, bem como atenuar o impacto financeiro de novas exigências ambientais na sustentabilidade das mesmas. Entende-se ainda que, de acordo com a liberdade de associação e por forma a garantir a igualdade entre as várias empresas do mesmo sector, a adesão deve ser garantida não apenas às indústrias representadas pelas associações no momento da negociação e celebração dos contratos, mas também àquelas que não se encontrem representadas, por opção própria, nesse momento.

Há que distinguir dois momentos essenciais: o primeiro, da negociação e celebração do contrato-programa ou contrato-tipo, que ocorre entre as associações representativas dos sectores de actividade económica, de um lado, e o Governo (representado pelo Ministério do Ambiente, conjuntamente com o ministério responsável pelo sector em causa), do outro, momento em que ficam definitivamente estabelecidas as cláusulas contratuais; e o segundo, da concreta adesão da empresa ao contrato-tipo pré-estabelecido. É, assim, concedido um prazo e fixado um calendário a cumprir pelas empresas aderentes para adaptação às normas ambientais já em vigor, os quais serão tomados como referência para a fiscalização da actividade das empresas no que toca ao cumprimento das suas obrigações ambientais, tal como prevê o nº 6 do artigo 78º. As normas imperativas não serão, deste modo, aplicadas às empresas aderentes até ao final desse mesmo prazo. Após este, a empresa já deverá estar apta para cumprir os limites de emissões fixados por lei. Consegue-se assim, nas palavras de Mark Kirkby[2], em vez de um ‘cumprimento generalizado’, o qual se demonstra como praticamente inalcançável, um ‘cumprimento possível’. Ou seja, atinge-se o fim de interesse público protegido pela norma ambiental não na sua totalidade, mas pelo menos em parte, o que acaba por revelar, na maior parte dos casos, uma eficácia significativamente maior em comparação com a mera sujeição aos comandos legais. Além da vantagem da eficácia, este meio assegura também a prossecução de outros valores, designadamente o da sustentabilidade económica das empresas, na medida em que a sujeição directa e imediata aos comandos legais costuma acarretar elevados custos às mesmas que, deste modo, são atenuados. Visto isto pareceria, à partida, tratar-se de um meio alternativo bastante benéfico e positivo. Mas há questões preponderantes que se levantam, e que põem em causa a legitimidade e legalidade desta alternativa contratual, sobretudo a do choque com o princípio da legalidade.

Este princípio estruturante do Estado de Direito democrático, constitucionalmente consagrado no artigo 266º, nº 2 da nossa Constituição, subordina a Administração à lei. Ora, o que esta figura parece fazer é isentar, mediante contrato, as empresas que a ele adiram do cumprimento de normas ambientais em vigor durante o prazo de adaptação acordado e fixado, o que viola claramente o princípio em causa. Além do princípio da legalidade da Administração, é violado o princípio da tipicidade das formas de lei, consagrado no artigo 112º, nº 5 da CRP, pois habilita-se o contrato celebrado pela Administração a derrogar os efeitos de normas jurídicas de natureza legislativa. Têm sido avançados argumentos no sentido de uma ‘desculpabilização’ destas questões, apoiados na afirmação de uma crise generalizada do princípio da legalidade. Antes de mais a lei, geral e abstracta, não teria capacidade de regular com detalhe as situações concretas da vida – tal parece, porém, óbvio e um dado assente para qualquer das posições que se adopte. Contudo, aspectos como a definição do que seja o ‘interesse público’ a prosseguir pelas normas ambientais - que seria, à partida, apenas determinável em termos exactos e concretos pela Administração, diante das circunstâncias específicas do caso – e a exigência de eficácia que recai sobre a Administração – que conduziria à necessidade de um alargamento da margem de livre decisão que lhe é conferida – são entendidos pelos defensores da legalidade destes contratos como justificadores da sua importância e necessidade.

Mark Kirkby entende que esta figura contratual apenas poderá assumir um papel residual no ordenamento jurídico português isto porque, das duas uma: ou a lei, de facto, confere uma ampla autonomia decisória à Administração (designadamente por a estatuição da norma ambiental comportar uma significativa margem de discricionariedade), caso em que o contrato de adaptação poderá revelar-se bastante útil; ou a lei é bastante completa, definindo com rigor os parâmetros de actuação da Administração, situação na qual a celebração deste tipo de contratos constituirá uma clara violação do princípio da legalidade e, como tal, será inconstitucional. Vasco Pereira da Silva[3] assume um posicionamento bastante similar, defendendo uma interpretação conforme à Constituição e admitindo este tipo de contratos, no limite, desde que os mesmos respeitem três condições: não se traduzam numa ‘fraude à Constituição ou à lei’ (no sentido de uma fuga à hierarquia dos actos normativos); ‘não ponham em causa os princípios fundamentais que regem a actuação administrativa’ e consigam encontrar ‘cabimento na previsão legislativa’.

Outro aspecto importante ao qual merece ser feita referência é o da restrição que, deste modo, se verifica relativamente ao direito fundamental ao ambiente – direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17º da CRP). Podemos afirmar que a aprovação de normas de qualidade ambiental constitui uma definição e concretização legislativa do conteúdo desse mesmo direito fundamental. O DL 236/98, ao permitir que as emissões poluentes não cumpram níveis tão exigentes quanto aqueles legalmente consagrados está a limitar o conteúdo do direito fundamental. Uma tal restrição só será admissível se respeitado o princípio da proporcionalidade (artigo 18º, nº 2 da Constituição). Embora, com efeito, haja uma justificação para a restrição operada – a do desenvolvimento económico e social, tarefa fundamental do Estado nos termos do artigo 9º, alínea d) da CRP – já será duvidosa a sua efectiva necessidade, sobretudo se verificarmos que se trata de uma restrição cujos contornos são extremamente imprecisos, sendo deixada à Administração uma margem de discricionariedade tão ampla que lhe permite estipular, em cada momento, os valores concretos que serão contratados.

Atentemos agora à tutela de particulares terceiros aos contratos, com direitos e interesses legítimos no caso concreto que possam vir a ser lesados por aqueles. Será que o procedimento de formação deste tipo de contratos tem em conta o direito de participação procedimental dos interessados na formação da decisão administrativa? O artigo 78º do DL 236/98 parece ignorar esta questão o que, a meu ver, não é a solução mais correcta e sensata, pois trata-se de uma área particularmente sensível – estão em causa posições jurídico-subjectivas de terceiros exteriores ao contrato, que podem assim ver afectadas as suas esferas pessoais, de um momento para o outro, sem possibilidade de reagir. Apesar deste aparente ‘ignorar’ do problema por parte do regime, o CPA parece resolver genericamente a questão. O artigo 181º do CPA manda aplicar à formação dos contratos administrativos as disposições relativas ao procedimento administrativo, ou seja, aos actos administrativos, o que significa que tudo o que diga respeito aos direitos de participação procedimental dos interessados para tutela dos seus direitos nos actos administrativos se aplica, com as necessárias adaptações, aos contratos administrativos. Aplica-se, por conseguinte, o artigo 55º, nº 1 do CPA, que consagra um mecanismo de notificação obrigatória aos interessados, que no caso em apreço serão os particulares que sejam vizinhos ambientais de empresas que adiram aos contratos e as associações de defesa do ambiente que representem os interesses dos potenciais lesados.

Mas a questão gritante da tutela procedimental prende-se com o seguinte: o artigo 78º prevê contratos-quadro e não contratos individuais celebrados entre o Governo e as empresas em concreto. As partes na celebração são a associação representativa do concreto sector económico e o Governo, tal como dispõe o nº 1 do artigo. Ou seja, temos dois momentos: o primeiro, da celebração do contrato-quadro – contrato de adaptação sectorial; e o segundo, da adesão da empresa x ao referido contrato. Só aquando deste é que o terceiro, vizinho ambiental da empresa aderente, poderá sentir-se lesado no seu direito fundamental ao ambiente. E aqui já não terá possibilidade de intervir, mediante o seu direito de participação procedimental, na formação da decisão administrativa. Trata-se, pois, de uma ‘concepção meramente formalista-processual do procedimento[4] que impede, na prática, o particular afectado de agir em sua defesa na eventualidade de uma ameaça a um direito seu.

Por último, e para finalizar esta breve reflexão – que, como tal, não pretende ser exaustiva, mas apenas questionar alguns dos aspectos mais problemáticos do regime destes contratos – refira-se a posição de Carla Amado Gomes[5], que encara a possibilidade de derrogação de normas ambientais como uma autêntica ‘degradação do índice de protecção ambiental’, verdadeiramente contrário aos princípios que norteiam uma ‘coerente e eficaz protecção do ambiente’ e constituindo uma ‘demissão das responsabilidades públicas de protecção do ambiente’. Concordamos com a autora, na medida em que, deste modo, em vez de se incentivar a prossecução e o cumprimento dos níveis de protecção ambiental considerados ideais e consagrados na lei, incentiva-se precisamente o oposto: a sua alteração, no sentido de uma degradação ambiental. Outro aspecto que poderá estar a ser violado é o da concorrência, em condições de igualdade, entre empresas, que o nº 2 do artigo 78º abarca ao estabelecer a necessidade da conformação dos contratos com as regras comunitárias. Isto porque assim assiste-se a uma diferenciação entre as empresas que aderem ao contrato-quadro, que suportarão menores custos e, desse modo, conseguirão sustentar os seus níveis de produção e aquelas que resolvem não aderir, investindo na sua modernização técnica de modo a cumprir as normas legais imperativas, mas que assim poderão não obter níveis tão elevados de rendimento. Aqueles que não cumprissem os standards gerais de protecção ambiental seriam beneficiados em detrimento dos que os cumprissem, solução manifestamente injusta.

Resta-nos concluir, enfatizando a complexidade do tema que foi abordado e a diversidade de polémicas que suscita. Embora a legalidade da figura seja, para muitos, questionável, sendo inegável que a mesma toca uma série de aspectos sensíveis do ponto de vista jurídico, é também de considerar que, em termos de eficácia, este tipo de contratos pode, em certos casos, assegurar um maior cumprimento em comparação com a mera sujeição a comandos legais. No entanto, e face ao valor em presença – o ambiente – parece-me que, globalmente considerada, a figura dos contratos de adaptação ambiental desincentiva o cumprimento dos níveis de protecção ambiental estabelecidos, promovendo a sua alteração para níveis inferiores. Será justo fazer a eficácia administrativa prevalecer sobre o equilíbrio ambiental? Parece-me duvidoso...



Referências bibliográficas:

- AMADO GOMES, CARLA; ‘Introdução ao Direito do Ambiente’; AAFDL, 2012.

- KIRKBY, MARK; ‘Contratos de adaptação ambiental: a concertação entre Administração Pública e particulares na aplicação de normas de polícia administrativas’; Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2001.

- MOREIRA, ISABEL; ‘Contratos de adaptação ambiental – algumas reflexões’; Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1999.

- PEREIRA DA SILVA, Vasco; ‘Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente’; Almedina, 2004.

- RODRIGUES SILVA, DUARTE; ‘Os contratos de adaptação ambiental’; Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2001.



Iida Ojanen Ferreira Alves, nº 20773


[1] KIRKBY, MARK; ‘Contratos de adaptação ambiental: a concertação entre Administração Pública e particulares na aplicação de normas de polícia administrativas’; Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2001.
[2] KIRKBY, MARK; ‘Contratos...’.
[3] PEREIRA DA SILVA, Vasco; ‘Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente’; Almedina, 2004.
[4] KIRKBY, MARK; ‘Contratos...’.
[5] AMADO GOMES, CARLA; ‘Introdução ao Direito do Ambiente’; AAFDL, 2012.

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