§ 0. Enunciado
A discussão da questão da inconstitucionalidade ou não
inconstitucionalidade dos contratos de adaptação ambiental tem de ser
configurada e analisada sob os pontos de vista certos e contextualizada,
previamente, da forma correcta. Dogmatizar os contratos de adaptação ambiental
será, sem dúvida, um exercício útil, contudo não me parece que esse exercício
possa ser determinante na aferição da sua inconstitucionalidade, ou seja, não
sendo dispensável a análise da figura dos contratos de adaptação, a verdade é
que a inconstitucionalidade destes contratos tem de ser aferida tendo por
referência contratos de adaptação específicos, isto é contratos estabelecidos
em normas (leis) específicas. Isto porque só se pode analisar a
inconstitucionalidade ou não de normas e não de figuras criadas e definidas por
um exercício de dogmatização, mesmo que essas normas estabeleçam, por
consequência, essas figuras.
Desta forma, apesar de se fazer no presente artigo uma
breve análise à figura dogmática dos contratos de adaptação ambiental, analisar-se-á
em específico normas e a sua conformidade com a Constituição. Face à recente
alteração à Lei de Bases do Ambiente (LBA) que deixou de consagrar os contratos
de adaptação ambiental, este estudo debruçar-se-á sobre o Decreto-Lei nº
236/98, em rigor as normas do artigo 78.º que estabelecem um específico
contrato de adaptação ambiental. Portanto, não analisaremos a
inconstitucionalidade da figura dos contratos de adaptação ambiental, mas sim
do contrato de adaptação estabelecido no artigo 78.º DL 236/98, que aliás tem
suscitado discussão doutrinária e, obviamente, divergência.
§ 1. A figura
dos contratos de adaptação ambiental
i. Contratação
ambiental: o contrato de adaptação
Em matéria de contratação ambiental distinguem-se duas
formas de contratação que se identificam com dois tipos de contratos: contratos
de adaptação ambiental e contratos de promoção ambiental. Apesar de o presente
estudo ter como objecto os contratos de adaptação a sua identificação convém
ser feita tendo-se como referencial paralelo os contratos de promoção. Ambos
têm em comum a característica de serem contratos celebrados entre a
administração ambiental e os destinatários de legislação ambiental em que se
derrogam o regime legal estabelecido nesses mesmos diplomas.
Estas derrogações tratam-se de derrogações aos limites
legais dos níveis de afectação do ambiente por parte de certas actividades: no
primeiro tipo de contratos temos uma derrogação transitória para conferir tempo
aos destinatários um tempo de adaptação aos níveis exigidos; no segundo tipo de
contratos temos uma derrogação, em princípio, definitiva em que se fixam níveis
superiores aos legais.
ii. Os contratos
de adaptação: os efeitos deônticos contrários à lei
Na dicotomia que se pode traçar na actividade
administrativa entre acções deônticas e acções não deônticas, apesar das
dificuldades, os contratos administrativos integram-se na actividade
administrativa deôntica. Quanto aos contratos em matéria ambiental, maxime os contratos de adaptação
ambiental, são contratos administrativos e, dessa forma, integram as acções
deônticas da administração.
O efeito deôntico do contrato de adaptação pode-se
configurar de duas formas diferentes: (i) criação de um dever ser individual e concreto e (ii) criação de um dever ser geral e abstracto (norma).
Independentemente do tipo de dever ser
que consubstancia um específico contrato administrativo, o seu sentido deôntico
ou prescritivo pode estabelecer um sentido deôntico diferente daquele presente
numa norma legal, ou seja, uma derrogação à lei. Aqui começa a configuração do
problema, pois os contratos de adaptação contêm efeitos deônticos contrários,
podendo o tipo de dever ser (geral e
abstracto ou individual e concreto) conter a diferença entre o conformidade e o
desconformidade com a Constituição.
§ 2. A questão
da conformidade dos contratos de adaptação à Constituição
A questão da
inconstitucionalidade ou não dos contratos de adaptação tem de ser bem
contextulizada e orientada correctamente na sua resolução. A questão colocada
correctamente será posta de forma a perceber-se se os contratos de adaptação,
em geral e independentemente da sua configuração normativa, são compatíveis com
a norma do artigo 112.º/5 da Constituição.[1]
Tendo os contratos de
adaptação o pressuposto de derrogação de limites fixados em lei, consegue
perceber-se que os contratos de adaptação, não figurando entre os actos
legislativos tipificados no artigo 112.º/1 da Constituição, têm um efeito que
os torna incompatíveis com a norma acima referida, pois estes são actos de
outra categoria que suspendendo ou modificando, embora temporariamente, os
limites fixados em lei entram em colisão com o prescrito no artigo 112.º/5.[2]
A inconstitucionalidade
das normas que consagram, sem mais densificação, contratos de adaptação (e
ainda os de promoção) é evidente. A evidência e a certeza desta
inconstitucionalidade tem que ver com o facto de a norma do artigo 112.º/5 da
Constituição se tratar de uma norma regra e dessa forma não ter de ser
perspectivada qualquer ponderação com qualquer norma de princípio no sistema
normativo constitucional.[3]
Vasco Pereira da Silva julga que «no limite» é ainda
possível considerar a admissbilidade dos referidos contratos no ordenamento
português.[4] À
partida não discordo desta orientação, pois, tal como vimos supra, esta orientação é, no meu
entender, de possível configuração. Contudo não posso concordar com o argumento
utilizado pelo Autor que recorre a uma «análise material dos valores» que se
defrontam, pretensamente, aquando da análise desta questão, sendo eles por um
lado «os princípios da constitucionalidade, da legalidade e da tipicidade das
formas de lei» e por outro lado os princípios «da eficácia da realização da
polícia ambiental pela via contratual, o da participação e da colaboração dos
particulares no exercício da administração do ambiente, eo o da tutela da
confiança dos particulares».[5] Segundo
o meu entendimento há aqui um problema de ordem técnico-normativa, pois se é
verdade que os contratos de adaptação podem levar à aplicação do princípio da
tipicidade das formas de lei (artigo 112.º da Constituição) e dos princípios
enunciados em segundo lugar também é verdade que desta aplicação não resulta
nenhuma concorrência nem conflito porque a norma do artigo 112.º/5 se aplica
sempre por, em rigor, se tratar de uma norma regra (como vimos supra) a que se dá o nome de «princípio»
e ter de se verificar o seu respeito, sem lugar a ponderação de outros
princípios.
§ 3. Modelos
normativos conformes com a Constituição: enunciado
i. O contrato de
adaptação como acção deôntica em espaço de discricionariedade
A questão da conformidade
ou desconformidade já foi analisada, mas essa análise foi feita de uma forma
genérica: como dissemos as normas que estabelecem contratos de adaptação são
inconstitucionais se as mesma se esgotarem aí, ou seja, se a par dessa
consagração não houver um desenvolvimento normativo capaz de tornar conforme
com a Constituição.
Os contratos administrativos são uma forma de
actuação da administração moderna, inserindo-se aqui, obviamente, os contratos
celebrados pela administração ambiental, nomeadamente os contratos de
adaptação. Em casos de discricionariedade administrativa, neste caso em matéria
ambiental, a regulação definitiva terá de ocorrer através de acções deônticas:
(i) acto administrativo, (ii) regulamento administrativo ou (iii) contrato
administrativo. Daqui decorre que os espaços de discricionariedade
administrativa em matéria ambiental podem ser conformados por contratos de
adaptação ambiental. Contudo estes contratos de adaptação só escapam à
inconstitucionalidade se, de facto, houverem espaços de discrionários, ou seja,
é preciso que as normas que consagram este tipo de contrato estabeleçam
critérios, vagos e indeterminados, que permitam deixar algum espaço de
conformação à administração ambiental e, além disto, só assim haverá
necessidade deste tipo de contratação.
ii. O contrato de adaptação como acção deôntica geral e abstracta
O segundo modelo que aqui
ensaio tem que ver com uma consideração atinente exclusivamente a uma variável
do próprio contrato de adaptação. Se se conseguir aproximar, do ponto de vista
substantivo – o que é possível –, os contratos de adaptação dos regulamentos
administrativos, bem como do ponto de vista formal, ou seja, atendendo-se aos
requisitos formais da emanação dos regulamentos, se consiga a par disso tornar
conforme os contratos de adaptação (que criam um dever ser geral e abstracto) à Constituição. Esta perspectiva tem
como fundamentação o artigo 112.º/7 da Constituição que permite que os
regulamentos densifiquem as leis.
O que caracteriza os
regulamentos (acções deônticas) é a generalidade e a abstracção: um regulamento
é uma soma de sentidos de dever ser
gerais e abstractos (normas). Como já foi dito anteriormente os contratos de
adaptação (tal como todos os contratos administrativos) têm a possibilidade
lógica de originar sentidos de dever ser
gerais e abstractos (normas).[6] O que
distingue os contratos administrativos dos regulamentos administrativos é o
procedimento de emanação: nos contratos temos um acordo (autovinculação) e nos
regulamentos temos uma heterovinculação. Não obstante essa vinculação pode
dar-se através de normas.
Do ponto de vista das
formalidades basta, por exemplo, que os contratos de adaptação celebrados pela
administração ambiental sejam tornados públicos através de portaria.
§ 4. Os
contratos de adaptação do DL 236/98: conformidade com a Constituição
Cumpre agora proceder à análise dos contratos de
adaptação regulados no artigo 78.º do DL 263/98. Os contratos de adaptação que
aqui vêm previstos têm merecido bastantes reservas e ao mesmo tempo bastante
discussão quanto à sua compatibilidade com a Constituição. Como disse logo no
início não se pode afirmar que os contratos de adaptação são, à partida, inconstitucionais,
pois o problema da constitucionalidade tem de ser aferido tendo como ponto de
partida normas: normas que prevêm contratos deste tipo. Portanto a análise dos
contratos de adaptação previstos no DL 263/98 passará por analisar as normas
que o instuem e aferir da sua compatibilidade com a Constituição, tendo como
ponto de referência os modelos ensaiados.
O artigo 78.º do diploma em causa está inserido na
parte das «disposições finais e transitórias» o que desde já fornece
coordenadas quanto ao objectivo deste artigo que passará regular regimes
transitórios.
As normas relevantes são as que resultam dos artigos
78.º/1, 78.º/3 e 78.º/10. A norma do artigo 78.º/1 prescreve a possibilidade de
a administração ambiental realizar contratos de adaptação ambiental. No nº 1 do
referido artigo fica, portanto, instituída a figura de um contrato ambiental
«com vista à adaptação à legislação ambiental em vigor», ou seja aos valores
instituidos no DL em estudo.[7]
A norma do artigo 78.º/3 prescreve qual é o objecto
dos contratos de adaptação, ou seja, fixa qual o conteúdo dos referidos
contratos. O conteúdo destes contratos «é
a concessão de um prazo e a fixação de um calendário, a cumprir pelas empresas
aderentes e, eventualmente, a definição das normas de descarga».[8]
Face a esta análise podemos já configurar uma possível
situação de compatibilidade com a Contituição. Do ponto de vista substantivo
podemos reconduzir os contratos de adaptação previstos neste diploma ao
regulamentos, desde que dos mesmos resulte um conjunto de sentidos de dever ser gerais e abstractos (normas). Desta
forma podemos estar aqui na presença de um contrato de adaptação que se
reconduz ao segundo modelo por nós ensaiado supra: a atribuição à administração ambiental
da competência para densificação da lei, embora por via contratual, feita pelos
nº 1 e 3 deste artigo é, do ponto de vista substantivo, conforme com o artigo
112º/7 da Constituição.
A norma do artigo 78.º/10 prescreve que a norma
sectorial de descarga referida no nº 3 tem de ser fixada por portaria. Esta
fixação por portaria só tem de ser feita quanto às normas de descargas não
tendo de ser feita por portaria quando se trate somente da fixação de um
calendário de adaptação. Esta norma fornece-nos o último requisito do modelo
ensaiado para a verificação da compatibilidade com a Constituição dos contratos
de adaptação instituídos por este diploma.[9]
Contudo esta norma só garante a compatibilidade quando se trate da fixação de
normas de descarga e ao mesmo tempo do calendário por portaria. Assim, à
partida, só haverá compatibilidade quando os contratos de adaptação fixarem
normas de descarga, pois estas terão de ser fixadas posteriormente por
portaria.
Concluindo os contratos de adaptação ambiental
previstos no DL 263/98 não serão inconstitucionais sempre que os mesmos originem
sentidos de dever ser gerais e
abstractos, fixarem normas de descarga e estas sejam fixadas por portaria a par
de todo conteúdo do contrato, inclusive os calendários de adaptação. Não
obstante, não parece dever-se admitir que todos os contratos de adaptação que
não fixem normas de descarga devam ser inconstitucionais, bastando que o
conteúdo dos contratos seja posteriormente à fase de contratação emitido por
portaria pelo ministério competente.
§ 5.
Bibliografia
Duarte, David, A norma de legalidade procedimental administrativa, Coimbra:
Almedina, 2006.
Lopes,
Pedro Moniz, Princípio da Boa Fé e
Decisão Administrativa, Coimbra: Almedina, 2011;
Silva,
Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito,
Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, 2002.
Por Tiago Rolo Martins
[1] A norma que se pode retirar do
enunciado normativo do artigo 112.º/5 da Constituição pode ser descrita na
seguinte proposição: [previsão] A lei
[operador deôntico] não pode
[estatuição] criar outras categorias de
actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com
eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar
qualquer dos seus preceitos.
[2] Não obstante os contratos de promoção
serem um tipo contrato ambiental que, face ao sentido da legislação ambiental,
seja mais favorável, parece-me que, em rigor, eles estão submetidos de igual
forma ao crivo desta norma, ou seja, independentemente da sua configuração prater legem, não deixam de ser
modificações da lei e, assim, inconstitucionais por colidirem com o que
prescreve a norma do artigo 112.º/5 da Constituição.
[3] Apesar de se designar como princípio da
tipicidade legal o que vem estabelecido em todo o artigo 112.º da Constituição,
a verdade é que norma do nº 5 do mesmo artigo se trata de uma norma regra, isto
porque a previsão compreende uma formulação própria de regra.
[4] Citação de Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente,
pg. 217.
[5] Citação de Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente,
pg. 218.
[6] A administração ambiental quando
celebra, por exemplo, um contrato de adaptação com uma associação representante
de um determinado sector, sabemos que os sentidos de dever ser nele contidos vinculam as empresas que façam e que virão
a fazer parte dessa associação, mas eles não estão determinados à partida, ou
seja, temos a característica da generalidade. A característica da abstracção
continua a ser a mesma, ou quase a mesma, que consta da lei.
[7] Citação do artigo 78.º/1 do DL 263/98.
[8] Citação do artigo 78.º/3 do DL 263/98.
[9]
Curiosamente Vasco Pereira da Silva critica uma
disposição que poderá salvar da inconstitucionalidade os contratos instituídos
por este diploma: cfr Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, pg. 218.
Visto.
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