domingo, 18 de maio de 2014

OS CONTRATOS DE ADAPTAÇÃO AMBIENTAL: CONFORMIDADE CONSTITUCIONAL

§ 0. Enunciado

A discussão da questão da inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade dos contratos de adaptação ambiental tem de ser configurada e analisada sob os pontos de vista certos e contextualizada, previamente, da forma correcta. Dogmatizar os contratos de adaptação ambiental será, sem dúvida, um exercício útil, contudo não me parece que esse exercício possa ser determinante na aferição da sua inconstitucionalidade, ou seja, não sendo dispensável a análise da figura dos contratos de adaptação, a verdade é que a inconstitucionalidade destes contratos tem de ser aferida tendo por referência contratos de adaptação específicos, isto é contratos estabelecidos em normas (leis) específicas. Isto porque só se pode analisar a inconstitucionalidade ou não de normas e não de figuras criadas e definidas por um exercício de dogmatização, mesmo que essas normas estabeleçam, por consequência, essas figuras.
Desta forma, apesar de se fazer no presente artigo uma breve análise à figura dogmática dos contratos de adaptação ambiental, analisar-se-á em específico normas e a sua conformidade com a Constituição. Face à recente alteração à Lei de Bases do Ambiente (LBA) que deixou de consagrar os contratos de adaptação ambiental, este estudo debruçar-se-á sobre o Decreto-Lei nº 236/98, em rigor as normas do artigo 78.º que estabelecem um específico contrato de adaptação ambiental. Portanto, não analisaremos a inconstitucionalidade da figura dos contratos de adaptação ambiental, mas sim do contrato de adaptação estabelecido no artigo 78.º DL 236/98, que aliás tem suscitado discussão doutrinária e, obviamente, divergência.

§ 1. A figura dos contratos de adaptação ambiental

i. Contratação ambiental: o contrato de adaptação

Em matéria de contratação ambiental distinguem-se duas formas de contratação que se identificam com dois tipos de contratos: contratos de adaptação ambiental e contratos de promoção ambiental. Apesar de o presente estudo ter como objecto os contratos de adaptação a sua identificação convém ser feita tendo-se como referencial paralelo os contratos de promoção. Ambos têm em comum a característica de serem contratos celebrados entre a administração ambiental e os destinatários de legislação ambiental em que se derrogam o regime legal estabelecido nesses mesmos diplomas. 
Estas derrogações tratam-se de derrogações aos limites legais dos níveis de afectação do ambiente por parte de certas actividades: no primeiro tipo de contratos temos uma derrogação transitória para conferir tempo aos destinatários um tempo de adaptação aos níveis exigidos; no segundo tipo de contratos temos uma derrogação, em princípio, definitiva em que se fixam níveis superiores aos legais.

ii. Os contratos de adaptação: os efeitos deônticos contrários à lei

Na dicotomia que se pode traçar na actividade administrativa entre acções deônticas e acções não deônticas, apesar das dificuldades, os contratos administrativos integram-se na actividade administrativa deôntica. Quanto aos contratos em matéria ambiental, maxime os contratos de adaptação ambiental, são contratos administrativos e, dessa forma, integram as acções deônticas da administração.
O efeito deôntico do contrato de adaptação pode-se configurar de duas formas diferentes: (i) criação de um dever ser individual e concreto e (ii) criação de um dever ser geral e abstracto (norma). Independentemente do tipo de dever ser que consubstancia um específico contrato administrativo, o seu sentido deôntico ou prescritivo pode estabelecer um sentido deôntico diferente daquele presente numa norma legal, ou seja, uma derrogação à lei. Aqui começa a configuração do problema, pois os contratos de adaptação contêm efeitos deônticos contrários, podendo o tipo de dever ser (geral e abstracto ou individual e concreto) conter a diferença entre o conformidade e o desconformidade com a Constituição. 

§ 2. A questão da conformidade dos contratos de adaptação à Constituição

            A questão da inconstitucionalidade ou não dos contratos de adaptação tem de ser bem contextulizada e orientada correctamente na sua resolução. A questão colocada correctamente será posta de forma a perceber-se se os contratos de adaptação, em geral e independentemente da sua configuração normativa, são compatíveis com a norma do artigo 112.º/5 da Constituição.[1]
            Tendo os contratos de adaptação o pressuposto de derrogação de limites fixados em lei, consegue perceber-se que os contratos de adaptação, não figurando entre os actos legislativos tipificados no artigo 112.º/1 da Constituição, têm um efeito que os torna incompatíveis com a norma acima referida, pois estes são actos de outra categoria que suspendendo ou modificando, embora temporariamente, os limites fixados em lei entram em colisão com o prescrito no artigo 112.º/5.[2]
            A inconstitucionalidade das normas que consagram, sem mais densificação, contratos de adaptação (e ainda os de promoção) é evidente. A evidência e a certeza desta inconstitucionalidade tem que ver com o facto de a norma do artigo 112.º/5 da Constituição se tratar de uma norma regra e dessa forma não ter de ser perspectivada qualquer ponderação com qualquer norma de princípio no sistema normativo constitucional.[3]
            Vasco Pereira da Silva julga que «no limite» é ainda possível considerar a admissbilidade dos referidos contratos no ordenamento português.[4] À partida não discordo desta orientação, pois, tal como vimos supra, esta orientação é, no meu entender, de possível configuração. Contudo não posso concordar com o argumento utilizado pelo Autor que recorre a uma «análise material dos valores» que se defrontam, pretensamente, aquando da análise desta questão, sendo eles por um lado «os princípios da constitucionalidade, da legalidade e da tipicidade das formas de lei» e por outro lado os princípios «da eficácia da realização da polícia ambiental pela via contratual, o da participação e da colaboração dos particulares no exercício da administração do ambiente, eo o da tutela da confiança dos particulares».[5] Segundo o meu entendimento há aqui um problema de ordem técnico-normativa, pois se é verdade que os contratos de adaptação podem levar à aplicação do princípio da tipicidade das formas de lei (artigo 112.º da Constituição) e dos princípios enunciados em segundo lugar também é verdade que desta aplicação não resulta nenhuma concorrência nem conflito porque a norma do artigo 112.º/5 se aplica sempre por, em rigor, se tratar de uma norma regra (como vimos supra) a que se dá o nome de «princípio» e ter de se verificar o seu respeito, sem lugar a ponderação de outros princípios.

§ 3. Modelos normativos conformes com a Constituição: enunciado

i. O contrato de adaptação como acção deôntica em espaço de discricionariedade

            A questão da conformidade ou desconformidade já foi analisada, mas essa análise foi feita de uma forma genérica: como dissemos as normas que estabelecem contratos de adaptação são inconstitucionais se as mesma se esgotarem aí, ou seja, se a par dessa consagração não houver um desenvolvimento normativo capaz de tornar conforme com a Constituição.
             Os contratos administrativos são uma forma de actuação da administração moderna, inserindo-se aqui, obviamente, os contratos celebrados pela administração ambiental, nomeadamente os contratos de adaptação. Em casos de discricionariedade administrativa, neste caso em matéria ambiental, a regulação definitiva terá de ocorrer através de acções deônticas: (i) acto administrativo, (ii) regulamento administrativo ou (iii) contrato administrativo. Daqui decorre que os espaços de discricionariedade administrativa em matéria ambiental podem ser conformados por contratos de adaptação ambiental. Contudo estes contratos de adaptação só escapam à inconstitucionalidade se, de facto, houverem espaços de discrionários, ou seja, é preciso que as normas que consagram este tipo de contrato estabeleçam critérios, vagos e indeterminados, que permitam deixar algum espaço de conformação à administração ambiental e, além disto, só assim haverá necessidade deste tipo de contratação.
           
            ii. O contrato de adaptação como acção deôntica geral e abstracta

            O segundo modelo que aqui ensaio tem que ver com uma consideração atinente exclusivamente a uma variável do próprio contrato de adaptação. Se se conseguir aproximar, do ponto de vista substantivo – o que é possível –, os contratos de adaptação dos regulamentos administrativos, bem como do ponto de vista formal, ou seja, atendendo-se aos requisitos formais da emanação dos regulamentos, se consiga a par disso tornar conforme os contratos de adaptação (que criam um dever ser geral e abstracto) à Constituição. Esta perspectiva tem como fundamentação o artigo 112.º/7 da Constituição que permite que os regulamentos densifiquem as leis.
            O que caracteriza os regulamentos (acções deônticas) é a generalidade e a abstracção: um regulamento é uma soma de sentidos de dever ser gerais e abstractos (normas). Como já foi dito anteriormente os contratos de adaptação (tal como todos os contratos administrativos) têm a possibilidade lógica de originar sentidos de dever ser gerais e abstractos (normas).[6] O que distingue os contratos administrativos dos regulamentos administrativos é o procedimento de emanação: nos contratos temos um acordo (autovinculação) e nos regulamentos temos uma heterovinculação. Não obstante essa vinculação pode dar-se através de normas.
            Do ponto de vista das formalidades basta, por exemplo, que os contratos de adaptação celebrados pela administração ambiental sejam tornados públicos através de portaria.
           
§ 4. Os contratos de adaptação do DL 236/98: conformidade com a Constituição

Cumpre agora proceder à análise dos contratos de adaptação regulados no artigo 78.º do DL 263/98. Os contratos de adaptação que aqui vêm previstos têm merecido bastantes reservas e ao mesmo tempo bastante discussão quanto à sua compatibilidade com a Constituição. Como disse logo no início não se pode afirmar que os contratos de adaptação são, à partida, inconstitucionais, pois o problema da constitucionalidade tem de ser aferido tendo como ponto de partida normas: normas que prevêm contratos deste tipo. Portanto a análise dos contratos de adaptação previstos no DL 263/98 passará por analisar as normas que o instuem e aferir da sua compatibilidade com a Constituição, tendo como ponto de referência os modelos ensaiados.
O artigo 78.º do diploma em causa está inserido na parte das «disposições finais e transitórias» o que desde já fornece coordenadas quanto ao objectivo deste artigo que passará regular regimes transitórios.
As normas relevantes são as que resultam dos artigos 78.º/1, 78.º/3 e 78.º/10. A norma do artigo 78.º/1 prescreve a possibilidade de a administração ambiental realizar contratos de adaptação ambiental. No nº 1 do referido artigo fica, portanto, instituída a figura de um contrato ambiental «com vista à adaptação à legislação ambiental em vigor», ou seja aos valores instituidos no DL em estudo.[7]
A norma do artigo 78.º/3 prescreve qual é o objecto dos contratos de adaptação, ou seja, fixa qual o conteúdo dos referidos contratos. O conteúdo destes contratos «é a concessão de um prazo e a fixação de um calendário, a cumprir pelas empresas aderentes e, eventualmente, a definição das normas de descarga».[8]
Face a esta análise podemos já configurar uma possível situação de compatibilidade com a Contituição. Do ponto de vista substantivo podemos reconduzir os contratos de adaptação previstos neste diploma ao regulamentos, desde que dos mesmos resulte um conjunto de sentidos de dever ser gerais e abstractos (normas). Desta forma podemos estar aqui na presença de um contrato de adaptação que se reconduz ao segundo modelo por nós ensaiado supra: a atribuição à administração ambiental da competência para densificação da lei, embora por via contratual, feita pelos nº 1 e 3 deste artigo é, do ponto de vista substantivo, conforme com o artigo 112º/7 da Constituição.
A norma do artigo 78.º/10 prescreve que a norma sectorial de descarga referida no nº 3 tem de ser fixada por portaria. Esta fixação por portaria só tem de ser feita quanto às normas de descargas não tendo de ser feita por portaria quando se trate somente da fixação de um calendário de adaptação. Esta norma fornece-nos o último requisito do modelo ensaiado para a verificação da compatibilidade com a Constituição dos contratos de adaptação instituídos por este diploma.[9] Contudo esta norma só garante a compatibilidade quando se trate da fixação de normas de descarga e ao mesmo tempo do calendário por portaria. Assim, à partida, só haverá compatibilidade quando os contratos de adaptação fixarem normas de descarga, pois estas terão de ser fixadas posteriormente por portaria.
Concluindo os contratos de adaptação ambiental previstos no DL 263/98 não serão inconstitucionais sempre que os mesmos originem sentidos de dever ser gerais e abstractos, fixarem normas de descarga e estas sejam fixadas por portaria a par de todo conteúdo do contrato, inclusive os calendários de adaptação. Não obstante, não parece dever-se admitir que todos os contratos de adaptação que não fixem normas de descarga devam ser inconstitucionais, bastando que o conteúdo dos contratos seja posteriormente à fase de contratação emitido por portaria pelo ministério competente.
§ 5. Bibliografia 

Duarte, David, A norma de legalidade procedimental administrativa, Coimbra: Almedina, 2006.

Lopes, Pedro Moniz, Princípio da Boa Fé e Decisão Administrativa, Coimbra: Almedina, 2011;

Silva, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, 2002.


Por Tiago Rolo Martins


[1] A norma que se pode retirar do enunciado normativo do artigo 112.º/5 da Constituição pode ser descrita na seguinte proposição: [previsão] A lei [operador deôntico] não pode [estatuição] criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
[2] Não obstante os contratos de promoção serem um tipo contrato ambiental que, face ao sentido da legislação ambiental, seja mais favorável, parece-me que, em rigor, eles estão submetidos de igual forma ao crivo desta norma, ou seja, independentemente da sua configuração prater legem, não deixam de ser modificações da lei e, assim, inconstitucionais por colidirem com o que prescreve a norma do artigo 112.º/5 da Constituição.
[3] Apesar de se designar como princípio da tipicidade legal o que vem estabelecido em todo o artigo 112.º da Constituição, a verdade é que norma do nº 5 do mesmo artigo se trata de uma norma regra, isto porque a previsão compreende uma formulação própria de regra.
[4] Citação de Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, pg. 217.
[5] Citação de Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, pg. 218.
[6] A administração ambiental quando celebra, por exemplo, um contrato de adaptação com uma associação representante de um determinado sector, sabemos que os sentidos de dever ser nele contidos vinculam as empresas que façam e que virão a fazer parte dessa associação, mas eles não estão determinados à partida, ou seja, temos a característica da generalidade. A característica da abstracção continua a ser a mesma, ou quase a mesma, que consta da lei.
[7] Citação do artigo 78.º/1 do DL 263/98.
[8] Citação do artigo 78.º/3 do DL 263/98.
[9] Curiosamente Vasco Pereira da Silva critica uma disposição que poderá salvar da inconstitucionalidade os contratos instituídos por este diploma: cfr Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito, Lições de Direito do Ambiente, pg. 218.

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